ensaios - especial retrospectiva 2007
O corpo que ri Mudanças
de humor em 2007 por Fábio Andrade
A maior parte das listas retrospectivas costuma se restringir
aos lançamentos cinematográficos daquele ano, seja em circuito comercial de salas,
festivais ou dvd. A escolha, de fato, me parece a que melhor dá conta das questões
propostas pelo cinema contemporâneo, além de o recorte temporal mais firme facilitar
a ponte com os leitores (assumindo, aí, que as rotinas de críticos e leitores
se encontrem na rotina de espectadores de um determinado circuito cinematográfico).
Porém, com a multiplicação crescente dos meios de acesso ao cinema, essa linearidade
tende a ficar cada vez mais difusa e a convivência de obras de momentos originalmente
diferentes em um mesmo presente gera associações e aproximações que, por fim,
acabam iluminando novas relações percebidas a partir desta convivência de acasos.
Isso
explica, portanto, o nascimento das impressões deste texto pelo contraste de duas
revisões: um esbarrão acidental com a metade final de O Mentiroso, de Tom
Shadyac, na tv por assinatura; e o primeiro contato com a versão estendida de
O Virgem de 40 Anos, de Judd Apatow, em dvd. Pensados como marcos de dois
momentos próximos – e que se opõem em seu próprio discurso, já que em dado momento
de O Virgem de 40 Anos ouvimos Seth Rogen apontar o grande equívoco do
filme de Shadyac, dizendo que aprendera que não se deve mentir com o filme O
Mentiroso – mas que hoje já se revelam antagônicos, percebemos uma mudança
radical da relação da comédia com o corpo humano, em uma renovação de olhar que
parece se consolidar com um grupo de filmes exibidos pela primeira vez no Rio
em 2007: Ligeiramente Grávidos, o segundo de Apatow; Superbad – É hoje,
de Greg Mottola (foto acima); Antes Só do que Mal Casado, dos irmãos Farrelly;
e as exibições no Festival do Rio de Síndromes e um Século, de Apichatpong
Weerasethakul, e Mulher Na Praia, de Hong Sang-soo. Os
filmes de Apatow e cia. – eixo central de um grupo de artistas onde se incluem
Mottola, Rogen, Evan Goldberg, Jonah Hill, Paul Rudd, etc – aparecem como um novo
passo na trajetória recente da comédia que evidencia, basicamente, as mudanças
da relação do cinema com o corpo como ferramenta de humor. Assim como Apatow,
os Farrelly e Mottola afirmam seu cinema pela negação estética de um momento anterior
(no caso, a comédia norte-americana do início da década de 1990), Apichatpong
Weerasethakul e Hong Sang-soo são as pontas mais proeminentes de um novo cinema
que já parece se estabelecer sobre bases diferentes de seus recentes antecessores.
Esses dois filmes ganham maior atenção no texto complementar Outros
Corpos. O corpo dos FarrellyA
natureza da comédia é necessariamente subversiva, pois parte do sentimento de
inadequação à organização social. Até mesmo os representantes politicamente mais
conservadores do gênero, como o nosso Mazzaropi, agem pelo descompasso com um
novo estado de (des)ordem da sociedade. No caso do cinema, esse desconforto tem
tradicionalmente se manifestado de duas maneiras: o sujeito que percebe que o
mundo tem um ritmo autônomo, e o humor nasce da vontade desse corpo de adequar
seu tempo ao do mundo (pensemos em A General, de Buster Keaton, ou em Escola
de Carteiros, de Jacques Tati); e o sujeito que, voluntariamente ou não, usa
seu corpo como elemento subversivo dessa ordem, desse tempo social do mundo (Um
Convidado Bem Trapalhão, filme de Blake Edwards com Peter Sellers, é um bom
exemplo de uma tradição de subversão onde se encontram os irmãos Marx, Jerry Lewis
e até mesmo o João de Deus, de João César Monteiro). Se
a revisão de O Mentiroso traz consigo certo incômodo, é porque a agressiva
expansividade do corpo e do rosto de Carrey era empurrada para a marginalidade
dentro de uma encenação bastante conservadora. A força do humor de Carrey parece
extremamente deslocada, e, nesse caso específico, a facilidade com que Shadyac
a exclui para uma dimensão da vida a ser corrigida – a mentira, a imoralidade
– evidencia uma reação extremamente conservadora para com as estratégias de humor
de seu ator principal. Apenas em Debi e Lóide encontramos uma proposta
de direção que melhor abraça a elasticidade do corpo em expansão que o ator já
vinha, como uma ilha, protagonizando. Os Farrelly surgem não só como diretores
dispostos a abraçar uma radicalização de mise-en-scène sugerida pela presença
de um ator, mas também de pensar, a partir dessa presença, o corpo como questão
que determina as relações do ser no espaço e cria, com isso, novas relações com
o espectador. Se em O Mentiroso o corpo em expansão é problema a ser domado,
em Debi e Lóide ele já é visto como organismo a ser moldado pelo sujeito
para expressar justamente a subjetividade que a sociedade insiste castrar. Com
a plena assimilação por parte do público dessa nova estratégia de comédia, em
Eu, Eu Mesmo e Irene esse corpo já se revela a prisão da dupla personalidade
que se tornaria fisicamente presente com Ligado em Você – ambos filmes
que partem da comédia física que, naquele momento, já se esperava da dupla de
diretores, mas que aos poucos vão percebendo sua insuficiência e, especialmente
em Ligado em Você, se expandindo por territórios menos seguros. Com O
Amor é Cego e, sobretudo, O Amor em Jogo, os Farrelly invertem a lógica
de seu cinema pela mudança do sujeito: em vez do corpo em expansão, temos a projeção
do olhar. Antes
Só do que Mal Casado parte de estratégia de auto-implosão semelhante à de
Ligado em Você, pois toda a primeira metade do filme é construída sobre
aparências: a aproximação entre Eddie (Ben Stiller) e Lila (Malin Akerman); o
próprio retorno de Stiller como protagonista (algo que não acontecia, com os irmãos,
desde Quem Vai Ficar com Mary); a aparente identificação do casal; os acidentes
físicos (a seqüência da bicicleta por exemplo) que retomam um estilo já há muito
abandonado pelos realizadores; a aparência de um romance bem sucedido; a promessa
da lua de mel perfeita, dirigindo para o oceano ao som de “Rosalita”. Assim
como a fisicalidade extrema dos primeiros planos do filme de 2003 logo se mostram
insuficientes, aos poucos as aparências parecem não mais dar conta desse novo
universo: Lila cantava “Rosalita” porque ela canta toda e qualquer canção que
o rádio lhe oferecer; a tentativa de roubo que unira o casal revela um passado
que ela ainda não admitira; a pele tosta sob o sol, e a noiva ideal aos poucos
se mostra uma absoluta estranha. A primeira metade do último filme dos Farrelly
é uma construção sobre projeções de seu protagonista que, aos poucos, vão sendo
frustradas pela realidade. Mais que isso, é exemplo de um cinema que se expõe
como tese em sua primeira metade para, logo depois, poder destruí-la. O
jogo de aparência que já vinha, progressivamente, tomando conta dos filmes da
dupla em O Amor é Cego e Amor em Jogo¸ se expõe abertamente em Antes
Só do que Mal Casado, e o ruído causado por essas impressões só pode ser superado
pela afetividade. Não à toa, é o corpo que evidenciará as mudanças sofridas por
Eddie ao ver a possibilidade de um futuro feliz com Miranda (Michelle Monaghan)
virar migalhas diante dos seus olhos, já que,
uma vez que o homem já tenha passado pela expressão do corpo (de Debi e Lóide
a Eu, Eu Mesmo e Irene) e pela projeção do olhar (de O Amor é Cego
até agora), é preciso olhar para dentro de si. A queimadura de sol de Lila é outra
evidência essencial, pois a partir dela todo contato entre peles se mostra ainda
mais violento e doloroso, em contraponto à leveza das caminhadas e conversas que
Eddie compartilhará com Miranda. O amor é tão devastador para esse novo homem
que é capaz de expatriá-lo, de tirar seu projeto de vida, de fazê-lo perder o
rumo, de transformar o seu corpo. Se antes tínhamos personagens que viam no corpo
a possibilidade de completa manifestação, em Antes Só do que Mal Casado
eles sofrem como o diabo por a conjuntura não permitir a plena expressão do que
eles estão sentindo. O corpo sofre com as curvas de seu interior. É
muito expressivo que, em ano onde mudanças na comédia se consolidam, tenhamos
entre os protagonistas os nomes de Peter e Bobby Farrelly. Expressivo, pois são
eles os realizadores que, ao longo dos anos, melhor perceberam o esgarçamento
de certas estratégias do gênero e criaram, a partir dessa percepção, novos caminhos
possíveis para seus próprios filmes, sempre a partir da problematização do corpo.
Os corpos de ApatowSentimento
é palavra-chave para este momento, e isso só é confirmado por Superbad e
Ligeiramente Grávidos, ambas produções do clã Apatow. Em Superbad,
a oposição de abordagens de comédias distintas vem exposta em seus personagens
principais: temos nosso olhar dividido entre Evan (Michael Cera), garoto inteligente,
tímido e que só acredita na aproximação física por meio do respeito, e Seth (Jonah
Hill), expansivo, gráfico, espirituoso, mas incapaz de passar para uma faculdade
de renome. Ambos os personagens serão colocados à prova em uma última festa da
escola, na tentativa de arrumar bebidas para se aproximarem de Becca (Martha Maclsaac)
e Jules (Emma Stone), respectivamente. Tanto a passagem para a faculdade quanto
a possibilidade dos relacionamentos amorosos vêm para salientar uma outra perda:
a da relação que, até ali, existira entre os dois protagonistas. O sentimento
que permeia Superbad não é só o da descoberta (embora ele fique evidente
na iminente primeira vez entre Evan e Becca, cena filmada com um domínio tão impressionante
de encenação que captura o misto de medo e curiosidade do momento como o cinema
talvez nunca tenha conseguido antes), mas também o de um fim que é sentido – mas
este sentimento precisa ser contido, pois o mundo não o compreenderia. Se
o cinema centrado na figura de Jim Carrey parte do corpo em expansão, Apatow e
seus pares parecem interessados no corpo que se retrai, se contém, e extrai dessa
timidez uma nova possibilidade de humor. Depois da ereção matinal de O Virgem
de 40 Anos, ouvimos Evan dizer em Superbad que “vivemos em um mundo
onde precisamos esconder nossas ereções”. Se Evan é uma espécie de resposta ao
comportamento agressivamente gráfico de Carl, ambos se vêem angustiados em um
jogo de dissimulação que norteia a convivência. A relação dos dois está acabando,
e eles só conseguem conversar abertamente sobre o que estão sentindo depois de
beberem o suficiente para não se lembrarem de nada no dia seguinte. Não à toa,
esse novo cinema consagra as cenas de bebedeira como um novo ritual de convivência,
pois o álcool vem liberar sentimentos que eles não sabem como inserir no mundo.
Essa
liberação inconseqüente dos impulsos, porém, logo se mostra insuficiente, pois
toda relação é complementada pelo ponto-de-vista do outro envolvido. Se as manifestações
do corpo precisam ser escondidas, é o afeto que circula, pleno, nos dois casais
que se formam e na troca de olhares do “casal” que, ao fim do filme, se separa.
Ao fim e ao cabo, os filmes de Apatow e cia. vêm concentrando o olhar sobre esses
momentos de passagem para a vida adulta, sobre a necessidade de assumir conscientemente
uma postura em relação ao mundo. Superbad e Ligeiramente Grávidos
não são exceções, pois em O Virgem de 40 Anos acompanhamos personagens
que tem uma forte ligação com o passado e a infância, e que precisam crescer,
trocar de pele, encarar a vida adulta e seguir em frente. Personagens que precisam
buscar, em seu próprio corpo, lar que prometa algum conforto. Se
em determinado momento o underdog vinha bem representado na figura de Carrey,
O Virgem de 40 Anos representou uma guinada justamente por se ocupar de
um humor que contradiz diretamente a cartilha de Carrey: em vez da expansão, o
corpo em retração. A mudança de foco detecta uma questão maior, pois uma vez que
a explosão subversiva do corpo se torna esperada, o mundo joga para o extra-campo
uma outra natureza de personagens. Troca-se o descontrole esperado da década de
90 pelo estranhamento do mundo diante da tímida contenção desse novo homem. Não
é questão de optar por uma comédia mais comportada, mas sim de perceber que os
geeks tornaram-se os freaks (como dizia o título da série para televisão
que revelou Judd Apatow), e que são eles os capazes de subverterem uma lógica
hoje já acomodada, morna e ineficaz. A sexualidade torna-se
questão essencial, pois é justamente da relação ruidosa com o corpo que Apatow
extrai maior graça de seus filmes. Se o bloqueio sexual é algo a ser superado,
em O Virgem de 40 Anos, a questão afetiva de personagens como Jay e David
(Paul Rudd) parece patologia muito mais grave do que a abstinência sexual de Andy
(Steve Carrell) – que, ao fim, consegue fazer as pazes com o corpo sem abrir mão
de suas escolhas. Se Andy –
na mais expressiva metáfora do filme – sabe que os bonecos guardados na caixa
original têm maior valor, é para descobrir que esse valor precisa ser aproveitado
de maneira construtiva. Saímos de uma sexualidade constrangedoramente gráfica,
na primeira metade do filme, e caminhamos para um humor mais doce, sereno, mas
igualmente pulsante na metade final. Os dogmas da infância precisam ser quebrados
– com a ciência da dor do processo – mas substituí-los por dogmas da vida adulta
não seria troca muito vantajosa. À medida que libertar o corpo se torna uma necessidade,
é preciso pensá-lo de forma diferente. O Virgem de 40 Anos inaugura um
novo terreno para a comédia, pois percebe que a timidez e a contenção seriam a
grande anomalia em um mundo dominado pela carne, pela superfície. No
segundo filme de Apatow, é Ben Stone (Seth Rogen) quem canaliza todas as suas
questões: mais uma vez temos um personagem que busca nas drogas uma quebra do
constrangimento da existência, e que é obcecado pela sexualidade mediada (pornografia,
filmes na TV, sites), onde ele parece se sentir protegido de todas as conseqüências
de um envolvimento físico/emocional real. A troca do corpo como imagem, pelo corpo
como sujeito. Não à toa, em sua primeira noite com Alison (Katherine Heigl), ela
engravida, e ambos se vêem conectados por esse novo corpo, essa nova relação que
escapara do imediatismo para um convívio prolongado. Se
em O Virgem de 40 Anos o corpo em contenção e em expansão era dividido
entre vários personagens, em Ligeiramente Grávidos acompanhamos a mudança
de um para o outro em um só ser. A razão da leve correção é simples: assim como
os Farrelly apostavam em invenções quando sua ruptura anterior já se tornava aceitável,
o sucesso de O Virgem de 40 Anos é indicativo de uma intenção assimilada
e de uma necessidade de se pensar novas questões. Não à toa, a presença de Steve
Carrell, o ator principal do filme anterior, retorna a Ligeiramente Grávidos
evidenciando toda a sua assimilação: ele é uma popular estrela de cinema que dá
uma rápida entrevista a um programa de televisão. A
beleza do segundo filme de Apatow se mostra justamente quando físico e abstrato
começam a interagir para além de suas posições iniciais. Se, ao começo do filme,
tínhamos o contraponto do casal abstrato (Alison e Ben, com seu pedido de casamento
com uma aliança imaginária) em Pete (Paul Rudd) e Debbie (Leslie Mann) – irmã
de Alison que não se conforma com uma caixa de anel vazia, mas também não entende
o porquê de seu relacionamento estar desandando – aos poucos ambos os excessos
funcionam como separação dos casais, e o equilíbrio só se dá quando eles se mostram
dispostos a comprometer suas posições de conforto em nome de seus relacionamentos.
A relação física que unira, mais ou menos ao acaso, Alison e Ben retorna como
manifestação do afeto que por tanto tempo era exclusiva abstração. Essa
transformação fica tão evidente em uma primeira caminhada de mãos dadas, quanto
nas roupas das personagens que – progressivamente – vão se aproximando em tons
à medida que suas personalidades melhor se integram. Ligeiramente Grávidos
é um filme sobre o constrangimento, e esse constrangimento pode ser tanto social
(paternidade, casamento, amizade) quanto físico (corpo, idade, beleza). A busca
de seus personagens se dá, justamente, pela maneira de melhor expressar fisicamente
aquilo que eles são, e o que sentem. O problema é que o corpo nem sempre parece
obedecer. Março de 2008
editoria@revistacinetica.com.br
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