Crônica de uma Fuga (Crónica de una Fuga),
de Israel Adrián Caetano (Argentina, 2006)
por Leonardo Mecchi

O terror da ditadura

Filmes sobre as ditaduras militares são quase um sub-gênero do cinema latino-americano. Em alguns desses filmes, o que se busca é a recriação da figura do guerrilheiro enquanto mártir ou herói (vertente comum a filmes brasileiros como O que é isso, companheiro? ou Cabra-Cega). Em outros, a denúncia e a exposição de feridas abertas são os principais objetivos. É a essa última linha que se afilia o novo filme de Adrián Caetano, que busca no fato histórico – através dos letreiros iniciais que informam ao espectador tratar-se de um filme “baseado em fatos reais” – a legitimação para sua acusação. Mas, como retratar momentos traumáticos da história recente de um país? Como recriar tais eventos de modo a não resvalar em um tom distante ou cerimonioso, nem na banalização ficcional?

A essas questões incontornáveis para todo diretor que buscar em fatos reais a inspiração para seus filmes, Paul Greengrass foi buscar no gênero thriller os códigos para sua recriação do 11 de Setembro em seu recente Vôo United 93. De forma semelhante, Adrián Caetano ancora-se em outro gênero – o do filme de terror, como bem apontou Eduardo Valente em sua análise do filme durante o Festival de Cannes – para emoldurar seu retrato dos abusos cometidos pela ditadura militar argentina em Crônica de uma Fuga. A Adrián Caetano não interessa pintar sua denúncia com traços realistas (a fotografia lavada e o abuso no uso da lente grande-angular são um claro sinal disso) – interessa, isso sim, submeter o espectador à mesma sensação de terror e isolamento que acometeu aqueles personagens reais, e é aqui que a referência ao gênero se justifica. A experiência sensorial é fundamental ao diretor, que dessa forma reserva especial atenção à construção daquele espaço, ao jogo de luz e sombras e a um minucioso trabalho de som.

O espaço primordial do filme – o cativeiro onde aqueles que foram seqüestrados pelo governo militar eram submetidos a constantes sessões de tortura – nos é apresentado como um ambiente soturno e tenebroso, em uma tomada em contra-plongée que remete diretamente à apresentação da residência de Norman Bates em Psicose. Uma vez dentro desse ambiente, no qual se desenrolará a maior parte do filme, a câmera perscruta cada cômodo da casa com uma serena atenção. O trabalho com os sons daquele ambiente, amplificados a ponto de qualquer mínimo ruído contribuir para a tensão e suspense, completa a construção daquele espaço. O isolamento dos seqüestrados e as torturas psicológicas a que são submetidas – mais até do que as físicas, das quais praticamente só vemos as marcas – remetem também a filmes como Jogos Mortais, na instalação de um processo de degradação daqueles indivíduos até o ponto em que, nus e aterrorizados, se encontrem reduzidos a animais durante a fuga.

Se Adrián Caetano é bem sucedido na recriação do clima daquele momento traumático na história de seus personagens, é justamente em sua tentativa de fazer isso de forma didática e denuncista (como deixam claros os letreiros iniciais e finais) que o filme perde um pouco de sua força. Pois não apenas o diretor argentino não apresenta nada de novo em seu olhar sobre o tema, contentando-se apenas em repetir velhos clichês, como opta também por uma construção caricatural daqueles personagens –  em especial na imagem claramente sádica de alguns dos torturadores.

Ao final, entretanto, apesar da inclusão de letreiros indicando o que aconteceu com cada um dos personagens, o diretor deixa em aberto o significado daquela experiência em suas vidas, através do olhar do goleiro para uma garota com seu filho no colo – a mesma garota que ele havia visto, ainda grávida, antes de ter sido seqüestrado. Um olhar que pode indicar tanto a possibilidade de um futuro alheio àquele horror, quanto a dor de alguém que jamais conseguirá se reintegrar plenamente à vida que tinha antes.


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