in loco - Festival de Brasília
Competição
de curtas 35mm - últimos 3 dias
por Cléber Eduardo
Sexto
dia: dia de belos filmes
O Homem-Livro, de Anna Azevedo
Trecho,
de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina
Até a última noite do Festival de Brasília apenas
dois curtas, sem muita competição, mostraram na tela aspirações
de premiação legítima: Noite de Sexta, Manhã de Sábado,
de Kleber Mendonça Filho, e O Brilho dos Meus Olhos, de
Allan Ribeiro. Mas o epilógo da programação, com as exibições
de Trecho (foto acima), dos mineiros Clarissa Campolina
e Helvécio Marins Jr (quarto filme de “dupla” entre os curtas
de 35mm), e de O Homem-Livro, de Anna Azevedo, mudaram
significativamente o panorama apresentado até então. Tanto um
como outro tomaram a frente no certame e, independente do resultado,
seus realizadores integram-se a Kleber e Allan Ribeiro como valores
em progresso, com um percurso já interessante, que podem render
frutos mais vitalizantes – sobretudo pelo desejo de não se acomodar
em saídas fáceis ou previsíveis.
Trecho é mais um sinal da incrível fome
de experimentações da atual geração de diretores mineiros, sobretudo
os vinculados ao núcleo Teia, um universo de criação sobre o qual
disponibilizamos dois artigos de Eduardo Valente (sobre Minas
e sobre a Teia especificamente). Baseando-se muito livremente
em um conto de Marçal Aquino (O Boi) e acompanhando a figura
de um andarilho por uma estrada, temos de cara uma (con)fusão
entre os estatutos da captação, abolindo fronteiras de categorias
entre o ficcional e o documental para, acima de tudo, instalar
como registro e como percepção um fluxo poético de imagens. O
andarilho fala sobre a estrada, ou não fala nada enquanto é filmado
em movimento por planos fechados em seus pés, em suas mãos ou
em seu rosto, aos poucos nos colocando em contato com o espaço
por onde ele transita. Com seu deslocamento multidirecional (daí
as quebras de eixo no encadeamento dos planos), ritmado, permanente,
sem rumo, nos pondo em dúvida sobre qual a direção/objetivo de
personagem e filme, assim como pondo o processo do filme nessa
busca, quando o andarilho pergunta aos diretores se eles não lhes
farão nenhuma pergunta.Vemos assim mais um flerte do “cinema mineiro”
com a exibição do dispositivo, vertente com a qual lidam Kiko
Goifman, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi.
Não se
vê a enunciação de nenhum objetivo concreto, nenhuma tarefa a
ser cumprida pela linguagem para concluir algo. Apenas a abertura
para a captação da experiência desconhecida, para o inusitado
de um homem ordinário (sua conexão com O Homem-Livro),
para a beleza de seu ambiente em mudança constante (por conta
do deslocamento). Encontra-se nesse processo texturas atemporais,
granulações de incrível sensibilidade, imagens noturnas de arrebatamento
plástico, que buscam no formalismo um sinal de vida, de um lugar,
de um cinema sem medo de ir sem mapa onde deseja chegar, sem saber
ao certo onde é esse ponto de chegada, mas aberto a chegar lá
perdendo-se pelas estradas do cinema. Nenhum curta exibido em
Brasília chegou perto do alcance da experimentação de Trecho:
a da imagem que é a imagem da coisa, a coisa em si e algo acima
da coisa e da imagem. Difícil definir além disso, ao menos por
enquanto, mas nem sempre o cinema, superfície de provas químicas
de verdades e também ambígua nessas provas, é racionalizável de
primeira. E é isso que Trecho nos propõe: uma entrega sem
decodificação imediata.
Não
fica muito atrás o conjunto de O Homem-Livro, embora, em
relação a Trecho, tenha o facilitador de um personagem
performático, de fácil comunicação cômica por sua retórica expansiva,
cheia de imagens felizes e de reações “extraordinárias”, que o
legendam como imagem do inusitado. Que inusitado? O fato de ser
um pedreiro despido de formação escolar, que colecionou ao longo
da vida centenas de milhares de livros, ocupando sua casa com
volumes espalhados por todos os cantos. Sua paixão pelos livros,
mais que pela literatura, é verbalizada com poesia, mas também
com sarcasmo, reproduzindo, na linguagem oral, o culto da linguagem
a qual está vinculado: a linguagem das palavras.
Pode-se
alegar que, com um personagem desse, não tem erro. Tem sim. Basta
tomar como exemplo o que é feito com as imagens de Pixinguinha,
como elas são apresentadas, em Pixinguinha e a Velha Guarda
da Portela, de Thomas Farkas e Ricardo Dias (ver abaixo),
que não sabe ao certo como integrar a matéria-prima ao curta na
qual serão veiculadas. Em O Homem Livro, filme e matéria-prima
(o personagem, o entrevistado), ao contrário, estão integrados.
Cria-se uma forma de organizar as imagens e o som que privilegia
a palavra de quem fala, que nos coloca em um mundo do qual não
temos conhecimento (como faz Trecho). Anna Azevedo penetra
e percorre o espaço estreito, as capas dos livros, estabelecendo
uma relação de seu olhar com o espaço, mas também da realização
do filme com as conduções de filmar ali, inserindo um pequeno
acidente de filmagem. Terminou muito afinada a última sessão de
curtas em Brasília. Que a premiação tenha a sensibilidade de contemplar
essas duas experiências ou as de KMF e Allan Ribeiro.
* * *
Quinto
dia: dia de estranhamentos
Espeto, de Guilherme Marback e Sara Silveira
Uma Questão de Tempo, de Catarina Accioly
e Gustavo Galvão
Se
no encerramento da programação da noite do dia 26 foi exibido
O Baixio das Bestas, de Claudio Assis, certamente o filme
selecionado que, transitando por superfície ambígua e arriscada,
mais se abriu ao desafio, entre os curtas, a busca do estranhamento
foi diferente, com o risco sendo mais controlado e menos potente
– mas, ainda assim, com êxitos distintos.
Espeto
(foto acima), de Guilherme Marback e Sara Silveira (estréia da
produtora na direção) é uma piada macabra. Seu argumento é promissor:
a inveja/ira/ressentimento de um garçom de rodízio, que só serve
linguiça e é rejeitado pelos clientes, que só pedem picanha. Em
busca de aceitação, de ser desejado como o garçom da picanha,
ele trama uma saída – não distante da mostrada em O Corte,
de Constantin Costa Gavras. Apesar do tom bem humorado, extraído
de um conto de Vanessa Goulart, a brincadeira reflete a mentalidade
contemporânea, expressando a competitividade pela ascensão e pelo
pertencimento na cadeia produtiva, que reduz o ser humano a uma
peça de carne vendida no rodízio.
A linguagem
adotada, porém, não é realista. Somos jogados em um ambiente caracterizado
por uma atmosfera onírica, de pesadelo, carregada, esquisita,
na qual a voz do protagonista é sobretudo interna, um discurso
mental, perturbado, que formata ou é formatado por esse ambiente
fake, de um colorido neo-expressionista, como a fundir Murnau
com Jean-Pierre Jeunet (Delicatessen). Não podemos passar em branco
pela operação de câmera de Carlos Reichenbach, que há muitos anos
não exercia essa atividade em um set. Respeitando a decupagem
do par de diretores, ou contribuindo com a organizações das cenas,
Reichenbach flana com sua câmera pelo salão, acreditando no plano-sequência
(fixo ou em movimentos) como possibilidade de lidar com o espaço
sem perder fluxo (dos atores ou da câmera), estabelecendo não
apenas um olhar para o ambiente, mas também uma caligrafia desse
olhar.
Também
há busca de caligrafia em Uma Questão de Tempo, de Catarina
Accioly e Gustavo Galvão (em seu segundo curta no festival), um
dos quatro “filmes de dupla” selecionados (coincidência apenas
ou sintoma?). Também usando narração em off, mas com ambições
poéticas e não cômicas, o filme opta pelo acúmulo de características.
Seu universo é o dos encontros/desencontros afetivos, certamente
a circunstância mais recorrente entre os curtas em 35mm desse
festival, mostrando-nos uma procura pelas questões contemporâneas,
da ordem das emoções e das relações, concentradas em personagens
jovens, solitários, com a sensação de abandono e orfandade, mas
não sem conexões provisórias e renováveis constantemente.
Talvez
a linguagem surja dessa percepcão do mundo como espaço de deslocamentos
constantes, de velocidade e efemeridade de tudo, levando a câmera
a adotar um olhar instável e uma eventual troca de foco (efemeridade
do plano ou de um ponto de vista, de um olhar enfim). As imagens
projetadas em alta velocidade, as quebras de eixo nos cortes construtores
de pequenas elipses, o caminhar livre das imagens, certamente,
estão dentro dessa proposta do sentido de “alteração” como estado
de espírito. Mas há algo de uma rarefação cult procurada
pela imagem (também evidente no outro curta de Galvão, A Vida
ao Lado), de um empreendimento “filme de mulher do século
XXI” modulando a identidade dramática-estética (como se fosse
gênero), de um efeito kitsch gerado pela chave poética
de algumas imagens.
* * *
Quarto
dia: noite dos objetos
Pixinguinha
e a Velha Guarda da Portela, de Thomas Farkas e Ricardo Dias
Divino Maravilhoso,
de Ricardo Calaça
Na terceira noite do Festival de Brasília, não
eram os filmes as principais atrações, pelo menos não os filmes
como um modo de elaborar sentidos e estruturas, mas sim seus assuntos
e suas matérias-primas. Em outras palavras, foi uma noite em que,
para se celebrar o cinema, era preciso reduzi-lo, em última instância,
a uma linguagem de economia primária. Se isso aconteceu com o
longa, Batismo de Sangue, que burocratiza visualmente seu
corajoso acesso a corredores ainda escuros do regime militar,
o mesmo já tinha sido prenunciado com os curtas Pixinguinha
e a Velha Guarda da Portela, de Thomas Farkas e Ricardo Dias,
e Divino Maravilhoso, de Ricardo Calaça.
Comecemos
por Pixinguinha: o filme é motivado pelo desejo de tornar
pública as imagens do músico carioca em cima de um palco, no Ibirapuera,
em São Paulo, registradas por Farkas com uma câmera 16mm em 1954
e depois perdidas entre tantos rolos de negativo. Foi o reencontro
com esse material (o único, segundo Farkas, com Pixinguinha em
ação) que gerou o processo do filme. Não há a menor dúvida de
que, por seu valor histórico e estético, essas imagens são preciosas,
resgate de instantes vivos do passado, ressuscitados pela tecnologia
para cultivar a memória cultural. Não há muita diferença, enquanto
princípio, com a operação de Vladimir Carvalho (em O Engenho
de Zé Lins). Mas, a questão a ser colocada é outro: um curta
nasce de suas opcões, não apenas de sua matéria-prima, e essas
opções aqui são problemáticas.
Há um
excesso de oficialismo e institucionalização na apresentação narrada
do currículo de Farkas, assim como nas imagens escolhidas para
ter o que mostrar enquanto a voz nos ensina/informa. Mesmo a fala
de Farkas, aparentemente ciente demais do que tem a dizer e a
resumir para a câmera, escancara a não-espontaneidade. Curioso
é que, quando entram as imagens de Pixinguinha, acompanhado de
Almirante, Bide, Benito Lacerda e Donga, a espontaneidade se instala
– tornando dispensável, inclusive, a voz de Farkas, já que, ali
no quadro, importam somente os movimentos do músico, a reposição
de sua vida pela imagem, não os detalhes sobre o processo dos
dois filmes (o de hoje e aquele de 1954).
Já Divino Maravilhoso tem a disposição
de nos mostrar evidências de um ritual popular tradicional, que
preserva sinais de uma cultura popular profunda, ainda não descaracterizada
pela assimilação da indústria sonora e de comportamentos formatados.
A aproximação mescla o olhar observacional com fragmentos de entrevistas,
de forma um pouco apressada para um registro de ambições etnográficas,
com o empenho em radiografar por dentro o universo ao qual o realizador
não pertence, em revelar um mundo novo para a platéia, em compartilhar
o conhecimento adquirido. No entanto, essa manifestação popular,
como está na tela, torna-se valor em si. E expô-la, consequentemente,
seria o mérito do filme. Não é. Talvez seja sua importância como
registro de memória, mas não um valor estético – que, em um festival
de cinema, como sugere o nome do festival (de cinema), é o que
está em jogo.
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