ensaio
O nascente universo de uma dupla de jovens autores
por Cléber Eduardo

Nos primeiros segundos de Notívago (um exercício em vídeo realizado no início do curso de cinema na ECA-USP, e primeira experiência na direção de Juliana Rojas e Marco Dutra - foto ao lado), uma mulher de preto entra em casa. O que parece um plano qualquer é, de fato, uma imagem simbólica – não apenas dentro do filme, mas na filmografia da dupla. Aquela mulher que entra em casa, a rigor, entra pela primeira vez em um mundo ficcional, calcado em matrizes variadas do cinema, porém, um mundo de Marco e Juliana, tecido cuidadosamente com muita coerência. Esse mundo começa a se tornar reconhecível nos trabalhos seguintes, sempre mantendo a seletividade dos enquadramentos, as mulheres como protagonistas, sinais de desaparecimento e enfermidade, o tom seco, a economia de diálogos, a valorização do rosto das atrizes e a habilidade para construir climas angustiantes sem precisar de muitos recursos narrativos: em Notívago, temos a figura feminina, a angústia dessa protagonista diante de uma circunstância por ela considerada ameaçadora, sinais de sangue em uma banheira, blackout, uma crise na percepção do mundo.  

Se aqui adentramos a casa da dupla, ainda sem reconhecê-la, iremos nos acomodar lá dentro em A Espera: curta de escola de Dutra de três minutos, dois deles dedicados a um único plano seqüência, no qual, justamente, os personagens permanecem sentados (note-se: A Espera é direção solo de Dutra, mas em sintonia, muito fina, com suas parcerias com Juliana). Mais uma vez, uma mulher, o som no lugar das palavras, o desaparecimento da vida – há uma senhora com câncer em Concerto N° 3 (outra direção só de Marco, dentro do projeto Sal Grosso do Festival de Cinema Universitário), a morte de um bebê em O Lençol Branco (curta de formatura dos dois na ECA, exibido em Cannes na Cinéfondation - foto ao lado), uma mulher com plantas sob a pele em Um Ramo. Em A Espera, um velho, ao sentar-se ao lado de uma mulher em uma sala de hospital, acaba morrendo, não sem antes fitar a moça como se fosse uma desesperada despedida. Após a morte, ela chora, toma consciência da vida, recompõe-se e, pelo alto-falante, é chamada para ser atendida.

Durante o plano-seqüência final, nosso olhar avança em direção a ela, depois recua, nos aproximando da intimidade sem palavras daquela experiência e colocando essa experiência em perspectiva, trazendo a continuidade banal da vida para dentro de um momento de transcendência a partir do desaparecimento. Esse plano-seqüência não levanta as duas mãos para ser notado, como acontece em muitas experiências em que o plano-seqüência é maneirista. É funcional, potencializa uma situação e nos revela seus detalhes, vê mudanças acontecerem dentro do quadro (da vida à morte, da morte à vida), opera uma mise en scéne, não somente uma caligrafia ou uma exposição da imagem no tempo. É quase imperceptível.

Pode-se estender esse “rigor discreto”, ainda mais rigoroso que as estéticas de “rigor exibicionista”, à seletividade do olhar em seus outros filmes. Eles não parecem trabalhar com poucos ângulos, ou com a câmera no tripé, apenas para se vincularem à uma prática de cinema de arte, na qual se podem ver inseridos de Michael Haneke a Hou Hsiao Hsien. O rigor dos enquadramentos serve aos acontecimentos e a uma mais potente instalação nos espaços e situações. Tomemos como exemplo uma seqüência de Um Ramo, seu filme mais recente: há na cena a protagonista com partes do corpo ferido, por conta de sua tentativa de extrair plantinhas da pele. Ela está em um pet shop. Na conversa com o atendente, vemos um plano-detalhe, rapidamente, de marcas em seu braço. Não há corte para o rosto do atendente, que, supostamente, viu como nós essas marcas. A câmera fica no rosto dela, que, pela mudança da expressão, nos revela reação ao olhar dele, cobrindo a pele com a manga da blusa. Nenhum maneirismo na economia de planos. Apenas uma solução mais sutil e mais forte.

Há nos primeiros e nos mais recentes trabalhos da dupla uma instalação do extraordinário no ordinário da vida, não para tratá-lo como algo fantástico, mas para naturalizá-lo dentro do absurdo ou do choque por ele proporcionado. Uma sombra do Roman Polanski de O Inquilino, Repulsa ao Sexo e O Bebê de Rosemary, parece transitar entre os filmes – especialmente em O Lençol Branco. Já Em Um Ramo, de maneira aparentemente óbvia, somos levados a pensar em David Cronenberg – mas aparências enganam. Há uma espécie de reação da natureza ao homem, de um colapso da relação entre homem e natureza, que joga a questão para o alemão Werner Herzog, sem, com isso, entrar na discussão sobre a civilização e as ameaças a ela. Um Ramo não deixa de ser ainda um passo a mais rumo a autonomia da imagem se comparado a O Lençol Branco, que, apesar de ser mais “verossímil” em sua premissa (um bebê morto enquanto era amamentado e a mãe dormia), tem momentos de manipulação mais explícitos, no som, de modo a salientar a construção do clima propício ao absurdo. Um Ramo (foto acima), apesar de menos “verossímil”, é mais seco. Toda a instalação do extraordinário se dá na imagem, sem a ajuda de um condutor sonoro.

Diante da consolidação desse universo dramático de delicadeza e crueldade, cuja aproximação com os personagens fica no limite entre a busca de uma solidariedade com eles e uma transformação deles em objetos de observação quase clínica, surge a inevitável expectativa em relação ao futuro desse projeto – que, se em Um Ramo parece chegar a um auge, também coloca o desafio futuro de não se tomar coerência por repetição, de modo a evitar a transformação de um aprofundamento de questões em saídas fáceis. Habilidade para tanto a dupla tem demonstrado, plano a plano.

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