De Pernas Pro Ar, de Roberto Santucci (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

Falo, não te escuto

Parente cômico dos programas na tv noturna, dos objetos vibratórios que substituem a criatura amada por alguns minutos, De Pernas Pro Ar salta cambalhotas na indústria do sexo. A rigor, as palavras “indústria” e “sexo” nem deveriam constar na mesma expressão. Termos antagônicos que as professoras de português – usando chicotinho, luvas de couro e meias três quartos – escreveriam devagar na lousa, balbuciando: “an-tí-te-se”, seu menino mau. Indústria é processo autômato; prazer é dimensão construída; sexo deve ir além do fisiológico. Mas como a causa desse achatamento de conceitos está fora da tela e o cinema não se pode pretender o gênio da lâmpada que tudo explique e teorize, o filme embala a onda. Mescla, ainda, essa tremenda curiosidade sexual dos filhos da revolução com o carreirismo no ambiente de trabalho. Pacote resolvido, juntam-se os itens essenciais na bagagem da mulher precavida, tensa e absoluta.

Sem chifres de rinoceronte, sem amuletos proibidos pelo Ibama, sem mascates de turbante no Marrocos, De Pernas Pro Ar encara outra fantasia para vender o peixe apimentado: trintonas de tailleur ou de microvestido, cada qual batendo cabelo e ajeitando o blush. Alice, a histérica, tons pastéis, aperta freneticamente o Iphone junto ao peito. Pouca paciência para o filho, para o marido, quer subir na profissão – mamãe a criou com dificuldades, na nossa boa e velha classe média. O enrosco de Alice diminui ao conhecer Marcela, vizinha no prédio, dona providencial de uma sex shop. Maré de dildos, cintas, roupa íntima comestível, senhoras idosas brincando de prafrentex – a progenitora de Alice incorpora a terceira idade cuca fresca, parcela gritante do consumo atual.

Uma sex shop. Espécie de oráculo. Nada de Zabriskie Point ou Rio Babilônia, mas refresco para a executiva amarga, que nunca sentiu delícias no leito matrimonial. Os segredos vão sendo compartilhados: Alice e Marcela viram sócias, o moquifo cresce, prospera economicamente. Trocando a equação em miúdos: sexo e sucesso resolvidos. Agora, o revés para dar a liga: apesar de todo o esforço de libertação, a família idealizada continua a ser o esteio da narrativa. O ponto que se combate, que se procura e ao qual se volta. Porta-retratos com dias felizes – truque cenográfico óbvio, machucando corações. No fundo, o que Alice e Marcela desejam é um canto todo seu, uma companhia para fazerem bilu, alguém que esteja na platéia batendo palmas ao receberem um prêmio. A constatação piegas quase desmorona o deboche do enredo, mas o cinismo consegue trazer de volta o trem que parecia descarrilhado. Porque temos o novo revés: bancar Amélia não pode ser expediente full time.

Para se atingir a iluminação, o percurso é recheado de tiradas em que o falo vira mascote. Saudável, pequerrucho, um mimo, sem as perturbações que esgotam a guerra entre os sexos. Está aqui, ali, acolá, sobrevoando, diversos moldes, texturas e colorações. Gogo boys, coelho de pelúcia, próteses que assustam o pacato esposo. O sexo e o grude, homens perfeitos, homens emotivos. O revanchismo se joga, isto sim, para cima das moças que competem, criam traições aonde não existem. Mesmo assim, a dupla que lidera a história é curiosa. Os estereótipos de frígida e de vitaminada tomam um rumo que a cartilha da “comédia romântica” costuma separar no berço.

A bonitona pode ser alvo de inveja; até aí, nada demais. Cabelo longo, quadris largos, a bainha da roupa sete palmos acima do joelho. Leva a vida de sonhos, uma trupe ao redor, come doces na balada, substâncias psicotrópicas que a mocinha ingênua – na outra extremidade da farsa – não deve tocar, salvo para o alívio de uma piada. A piada de fato aparece, a “embriaguez” de Alice rende seqüência inteira – estamos, como se sabe, acompanhando o seu processo de libertação pessoal. Mas ocorre que a figura de Marcela se desconstrói. Ela que representa o controle cármico, a autora dos métodos mais inventivos em relações humanas, treme ao ver o príncipe encantado. Diz – aspecto mais interessante – as tábuas da lei no universo do espelhamento feminino: “você já viveu minha vida, agora vou viver a sua”. A mesma técnica acaba sendo usada na falsa amante do marido de Alice, ipsis litteris o arquétipo da mulher ideal na versão culta. Charmosa, fala idiomas, estuda história da Arte, complexa que só, inatingível e novamente invejada – bengala do roteiro, que opta pelo fusionamento repetido entre as meninas.

Constatação lógica, o eixo da trama se instala nas mulheres, apesar de visualmente os props dominarem quase todos os ângulos de quase todos os quadros. As sócias da sex shop, a mãe, a suposta amante. Olhando do lado de fora do ringue, chamados para entrar, sentam descansados o marido, o filho, o namorado da mãe. Às vezes alguém passa por eles e entrega umas toalhas. São fichinhas, a reboque no que parece uma caldeirada sobre o cotidiano feminino. A postura dialoga com o cinema popular, que esquece a figura da intermediação. Coloca personagens em contato direto com a vontade de saberem o que existe do outro lado da porta. Dão uns pulinhos, fogem da paranóia que suprime o gozo. Percebe-se um sabor real, sem o bafo de celofane. O embrulho tem, é claro, fôlego moralista, apego à idealização, ao café da manhã de fotonovela, mas rapidamente cede no clima de chacota. O vai-não-vai e a falta de onisciência acertam a maçã que paira em cima da estante, perto da hora da manicure, da reunião de pais na escola, da ida ao supermercado. Algo como “o que as mulheres conversam no banheiro”, esse mito milenar e insondável, que ainda incomoda gerações de homens em êxtase.

Janeiro de 2011

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