in loco - cobertura dos festivais
Depois de Lucia (Después
de Lucía),
de Michel Franco (México/França, 2012)
por Fabian Cantieri
Pletora do impreviso
"Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito".
Isak Dinesen
Eco
de um cenário cinematográfico recorrente, a manipulação
do mal-estar gera contestações, enfrentamentos e
às vezes até algumas verdades ontológicas
a cada novo filme brotado desse quase sub-gênero do cinema
contemporâneo. Um texto de alguns anos que demarcou posições
profundas quanto a um “cânone contemporâneo”
do nicho foi a
crítica de Ruy Gardnier sobre Dogville, na Contracampo.
Hoje ela se revela quase redundante (apesar de, ainda assim, ser
um lembrete necessário) de tão reverberados que
são seus argumentos em filmes da estirpe afora. Bater em
Lars Von Trier ou em outros dessa tendência se transformou
num automatismo, como chutar cachorro mau, quase morto, mas que
ocasionalmente morde. As assertivas morais já chegaram
ao tempo do enfadonho, então que corramos com a introdução,
pois no meio do caminho haverá pedras e surpresas.
Depois de Lucia, de Michel Franco, sejamos francos
e diretos, é daqueles filmes que te torturam e te fazem
sofrer. Mas talvez não seja só mais um. Sai o parti-pris
brechtiano, entra uma contundente direção que
nos carrega para uma imersão profunda no mundo daquelas
personagens antes mesmo de entendermos qual a grande questão
do filme. Sabemos do sofrimento do pai, que abandona o carro no
meio da rua e chora pusilânime
na cozinha, vemos rabichos de entrada e saída de planos
com certas folgas que logo nos remetem a mais alguns clichês
contemporâneos de dilatação gratuita dos tempos,
e chega-se até a desconfiar de uma encenação
juvenil cambaleante na cena da piscina. Até que vem a cena
do sexo, sexo filmado por celular, donde lembra-se (logo, prevemos)
rapidamente daquelas histórias recentes de garotos filmando
a própria transa sem consenso da parceira e subindo para
a internet – o auge da humilhação feminina.
No filme, o garoto que grava por celular nega sua disseminação
– mas ela existe mesmo assim e aí, enfim, chegamos
ao tema do bullying. Assunto aliás, bastante em
eminência no Festival do Rio desse ano, desde comentários
brandos em Shokuzai de Kyioshi Kurosawa, passando pela
motivação primeira da criação da gangue
feminina em Foxfire, de Laurent Cantet, até uma
associação contundente a um certo espírito
jovem americano em Nós e Eu de Michel Gondry.
Está lá em Nicômano: “as coisas são
conhecidas pelos seus fins”. A ética só tem
valor se determina a ação do homem no mundo –
importa a conseqüência do ato, não sua intenção.
Arnaldo Cezar Coelho discordaria junto a um manancial de pensadores
pós-Grécia, e, para fugir de um círculo retórico
ad infinitum, voltamos a outra premissa aristotélica
que sublima a necessidade de lei, do nascimento variante da moral
e de uma complexidade exorbitante quanto ao devir rumo ao bem
comum: “quando a coisa é indefinida, a regra também
é indefinida”.
A abertura e fechamento do embate logo em seguida, aqui no texto,
não é mais um superficial jogo especulativo, mas
um espelhamento do jogo do diretor. O bullying imposto
por Michel Franco poderia suscitar toda uma metafísica
da ética, mas seu filme consegue reptilianamente fugir
desse labirinto sem saída com a vingança do rapaz,
justamente aquele que não a maltratava, não a bolinava,
que em certos instantes parecia até gostar dela (mas ao
mesmo tempo, convenhamos que a defende bem mal na única
vez que está diante de uma situação “incômoda”).
O
filme não se torna um mero pacto de vingança;
antes da esparrela moralista, há um interesse na bola de
neve de um grão de arroz com a provocação
de um polêmico problema kantiano. O filósofo alemão
afirmava que se um bandido estiver atrás de uma pessoa
e um outro viu pra onde a vitima foi, é dever moral da
testemunha dizer a verdade mesmo que seja para responder à
pergunta do bandido. A verdade pode levar a um caminho onde o
homem que assistia a toda a cena não previa e vice-versa,
caso seja contada a mentira. Pela imprevisibilidade da vida, faz-se
dever contar a verdade, mas, quando da deontologia se subjuga
um vazio, há de se agüentar as conseqüências.
É nesse sentido que Peter Parker só se “transforma”
em super-herói a partir de um ato de anti-heroísmo
com a morte, até certo ponto “contornável”,
de seu tio Ben. “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”
nunca foi um lema estrito de super-herói e sim algo que
servia para aqueles todos que atravessam uma etapa de passagem
da vida – é o dito primeiro para qualquer adolescente.
Pois os jovens ao redor de Alejandra parecem não ter nem
uma vaga noção de seus poderes. Poderes altamente
destrutivos. José, dentro desse problema kantiano é
o primeiro a não perceber a potência de seus atos
ao filmar Alejandra, mesmo que depois venha tentar contorná-lo
– convenhamos de novo, mal e porcamente. Esse contorno é
o que demarca a complexidade do problema, e o que materializa
aquela velha história de que são uns sozinhos e
outros em bando (e essa sutileza é perceptível no
filme). Essa etapa é a demarcação de um juízo
ainda não inteiramente inabalável, se é que
isso se materializa algum dia. O único adolescente a aprender
com o erro, a tentar se reparar, a “criar juízo”
é aquele que receberá a justiça por todos
os outros. Justiça ou justeza não é o que
circunda o filme, ele caminha pelo terreno da imprevisibilidade
da ação.
Ação que é sempre empurrada pelo mal. Um
importante insight que Hannah Arendt tem ao fim do julgamento
de Eichmann (e percebamos a distância entre personagens
- não falamos de pequenos Hitlers aqui – e que sabemos
pouco sobre essa maturação futura) é perceber
que o mal pode estar conectado não a “convicções
ideológicas” ou a “motivações
especificamente más”, mas à falha do pensamento
que interfere na capacidade do juízo. No caso de Eichmann,
“não era estupidez, mas irreflexão”.
Irreflexão como as muitas zombarias escolares que a dupla
de meninos investe em Alejandra. Daí a importância
que Arendt dá ao movimento de pensar que, combinado à
vontade, queda, enfim, para uma decisão crítica
de ação que responde ao movimento do mundo. É
diante dessa articulação que é possível
criar autonomia, a capacidade de um julgamento independente, mesmo
que isso dissolva verdades morais de uma certa época.
Difícil
acreditar numa elocubração minimamente reflexiva
do garotinho gordo invadindo o banheiro para estuprar Alejandra.
Ele age por instinto, pelo tesão. Fácil entender
Alejandra, sua vergonha ante o pai e seu mutismo patente num primeiro
momento. Depois, o desejo de ver aquela menina gritar ao mundo
cresce. Mas isso não acontece nunca porque o crescimento
da bola de neve é degradê, lento e paulatino. Primeiro
Alejandra é acolhida por um grupo de jovens e, depois do
incidente, os acontecimentos vão exponencialmente se propagando
em intensidade e ritmo. Quase perto do fim, a visão é
praticamente a mesma da personagem de Lindsay Lohan em Meninas
Malvadas ao se deparar com aqueles estudantes típicos
de high school americana: uma selvageria animalesca
completa e sem sentido.
Existe um ponto de virada, aquele limite que não se deve
ultrapassar, que parece ser invisível aos adolescentes.
Por um lado, essa linha ou anda sendo subestimada nos últimos
anos pelas escolas ou, talvez por causa dessa mesma invisibilidade,
explodida com uma intensidade nunca antes vista e, assim, sendo
debatida e comentada intensamente ao redor do mundo. De vídeos
no YouTube, documentários,
matérias jornalísticas que se alastram até
manifestações políticas anti-bullying. A
“pertinência” do assunto não leva Franco
a querer saciar uma revanche ou um “aqui se faz, aqui se
paga” do delito. Através de uma decupagem precisa
e de um rigor milimétrico sobre seus personagens (principais
e estereotipados) e seus desencadeamentos, Franco consegue nos
deixar irrequietos na cadeira, sofrendo sobre o peso da inexorabilidade
da contingência humana.
Outubro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
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