Depois do Casamento (Efter Brylluppet),
de Susanne Bier (Dinamarca/Suécia, 2006) por
Cléber Eduardo
Universo reconhecível, detalhes distintivosSabemos
de cara que Depois do Casamento adotará a chave do melodrama. Temos lá
um protagonista dinamarquês, envolvido com projetos humanitários na Índia, que
retorna a seu país a negócios. Na festa de casamento da filha de seu provável
mecenas, reencontra uma ex-namorada e descobre ser o pai da noiva. São
duas as frentes dramáticas desenvolvidas a partir dessa coincidência arranjada
pelo roteiro. Primeiro, veremos a aproximação entre pai e filha, até então desconhecendo
um ao outro como tais, que constitui uma narrativa de aprendizado mútuo, marcado
por um entorno tenso e por uma experiência de encontro equilibrado, com o desejo
de conexão superando a dificuldade de comunicação verbal. Há um gostar duro, envergonhado,
inibido, mas um gostar, acima de tudo – ou melhor, um desejo de pertencimento,
de pertencer gostando e sendo gostado. A segunda frente dramática é encabeçada
pela doença do mecenas do protagonista, pai adotivo de sua filha, que começa a
terceirizar sua presença no mundo e a arranjar o futuro da família. Temos aqui
um gostar maiúsculo dentro de um trajeto de atitudes desequilibradas. Ambas as
frentes se conectam porque, em última instância, têm como núcleo uma decisão do
protagonista: ou ele retorna para a Índia, onde cuida de um menino e de uma instituição,
ou fica em Copenhague, onde será pai da filha orgânica. Há
um cuidado exagerado com a organização dos acontecimentos no roteiro (da diretora
Bier, co-escrito por Anders Thomas Jensen – também roteirista de Mifune e
O Rei Está Vivo), o que acaba por criar um efeito de conforto diante da
esquematização de situações nas quais as perdas são contornáveis e a vida segue
adiante sem traumas. Há uma ordem dramática na desordem do mundo. Há ainda um
funcionalismo exacerbado nas experiências dos personagens, nos permitindo identificar
demais as operações de roteiro. O voluntarismo humanitário do protagonista, por
exemplo, parece estar lá apenas para redimi-lo do passado, marcado por bebida
e mulheres. E sua relação com uma criança indiana (que na verdade ocupa poucas
imagens do filme) dá a impressão de ser, também, apenas uma informação de roteiro
que está ali para salientar uma circunstância dramática – sua decisão de ficar
na Dinamarca ou voltar para a Índia. Tanto o aprendizado
da relação pai/filha, também um dos motes de Não por Acaso, de Phillippe
Barcinski, quanto o enfoque sobre a família adotada, mais que gerada, são sinais
comuns no cinema contemporâneo, traço de vários filmes recentes – seja no universo
de Wim Wenders e Arnaud Desplechin, seja no de Steven Spielberg e Olivier Assayas.
Mas, se a condução desse inventário afetivo familiar parece acometida de excessos
de situações, de planos, de cortes, de pequenas elipses e de detalhismos na descrição
das ações, que pouco nos informam sobre os personagens e seu mundo, a força distintiva
de Depois do Casamento está em uma sensibilidade visual. Não
se está ignorando aqui o desleixo no encadeamento de alguns planos, o desrespeito
ao eixo nos cortes de um enquadramento para outro, um certo dar de ombros para
o rigor da imagem e da relação da câmera com atores e ambientes – numa liberdade
que beira a tosquidão em alguns momentos. Mas algumas opções de mise-en-scène,
se podem soar maneiristas pela repetição, indicam-nos uma diretriz estética, sempre
a serviço de um efeito emocional, objetivo primeiro e último das opções visuais
e sonoras-musicais. Susanne Bier opta sucessivas vezes, por exemplo, pelo plano
detalhe de olhos, eventualmente cortando de um olho para outro, como se quisesse
penetrar no interior de seus personagens, ou enxergar o reflexo desse interior
no olhar dos atores. Essa proximidade também é notada em planos nos quais a câmera
procura algum detalhe da reação do corpo à determinada situação. Há
uma noção de poético na prosa audiovisual da diretora: uma busca de um tecido
visual transmissor de algo da subjetividade dos personagens, de momentos de percepção,
de uma maneira de estar na vida e no mundo em certo instante. Percebe-se claramente
a disposição da cineasta em provocar choques também emocionais e amplificar a
voltagem dramática por meio da construção e manutenção de cenas pensadas, sobretudo,
para expor os personagens em sua vulnerabilidade e desespero. Podemos pensar em
John Cassavetes, mas com uma doçura na aproximação com a dor, sem a crueldade
do cineasta americano. Também se vê uma tomada de distância em relação a Lars
Von Trier, referência incontornável quando se pensa em intensidade de cena e de
atores, nesse caso ainda mais facilmente associável pela origem também dinamarquesa.
A diferença fundamental entre Bier e Von Trier, porém, está nas operações de distanciamento
dele, em oposição à manipulação emocional dela, assumida e derramada em sua construção
de atmosferas de sensibilidade. Também diretora de Corações
Livres e Brothers, ambos pautados pelo melodrama, Susanne chega a Depois
do Casamento herdeira e ao mesmo tempo emancipada do Dogma 95 – manifesto
do qual foi signatária. Herdeira por uma certa maneira “vídeo caseiro” de filmar
e montar, com uma fluência taquicárdica, de quem está permanentemente tirando
o pai da forca, recusando a imersão na experiência e tomando atalhos pelas elipses,
de modo a sustentar-se pela quantidade de planos, de modo a buscar uma gravidade
dramática na língua de fora da narrativa. Já a emancipação está no amaciamento
do drama, na explosão de afeto pelos personagens, na abertura de possibilidade
para um futuro menos seco. É o Dogma que crê, pode-se assim dizer – embora a crença,
devida à extrema organização dramática, só possa ser no roteiro. A
dramaturgia da poeira sacudida, bem situada socialmente na elite da Dinamarca,
com alta soma para ajudar na cura das perdas, parece ter sido fundamental para
sua exportação: Depois do Casamento concorreu ao Oscar de produção estrangeira
e possibilitou a Susanne escolher chaves e fechaduras nos EUA. Seu próximo filme,
Things We Lost in the Fire, trata de uma viúva disposta a morar com um
amigo do então marido, espécie de variação de Depois do Casamento, mais
uma vez propondo uma reconfiguração familiar. A produção será da DreamWorks, com
elenco de estrelas (Halle Berry, Benicio Del Toro e David Duchovny). Susanne não
deixa de estimular, pelas próprias escolhas e novos contextos de realização, significativa
curiosidade sobre os próximos passos. Seu talento tem se manifestado aos soluços,
aos pedaços, aos cacos, mas são fragmentos a se reter.
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