ensaios
Descobertas de Varda
por Juliana Cardoso - colaboração
para a Cinética
"Você sempre tem respostas;
é engraçado, eu sempre tenho perguntas..." – diz Cléo, a
personagem-título do filme de Agnès Varda, a um jovem com quem,
apesar de ter conhecido casualmente há pouco tempo pelas ruas
de Paris, tem momentos de conforto
e aventuras que parecem raros ao seu dia-a-dia.
Essa frase também nos serve como uma definição da obra da diretora:
um cinema que, mais do que certezas, oferece reflexões e questionamentos.
Apesar de sua intensa produção cinematográfica (cerca de
37 títulos, entre longas e curtas, ficcionais e documentais), a
obra de Agnès Varda é ainda pouco conhecida no Brasil, o que torna
a mostra dedicada à cineasta (que passa, ao longo de agosto e setembro
por São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) uma boa oportunidade para
se aventurar pelos caminhos de descobertas, inocências e vaidades,
amor e mistério, nos quais seus personagens freqüentemente se arriscam.
Se os filmes de Varda despertam uma sensação
de mistério, parece necessário compreendê-lo junto à noção de
descoberta. Essas duas dimensões aparecem entrelaçadas, talvez
porque esses mistérios se desenvolvam em uma atmosfera onírica.
Assim, os seus filmes muitas vezes nos colocam diante de uma expressão
do não-dito e do não-elaborado. Varda guia o olhar do espectador
para momentos que constantemente nos escapam porque, muitas vezes,
evidenciam a existência das lacunas dos sentimentos humanos. A
diretora faz um cinema de insights, e os compõe como notas
em uma sinfonia, sendo que não raro é já nos créditos de seus
filmes que entramos em contato com a sua regência – como acontece,
por exemplo, em Cléo, com cortes ritmados pelas ações das
personagens e pela música que acompanha a narrativa.
Assistir à Varda lembra ler Lispector. Isso porque
o seu cinema é um de momentos suspensos e mágicos, com o poder
de unir as coincidências e os mistérios da vida, situações que
são como curiosas poesias do dia-a-dia, quase mágicas. Mas a magia
em Varda não é apenas a do cinema, com seus deslocamentos no espaço
e no tempo, mas essencialmente uma magia da vida representada
ou capturada pelo cinema. Mona, protagonista de Sans toit ni
loi, talvez seja a personagem que exemplifica de
forma mais evidente a constante associação entre planos e sequências
a que a cineasta dá ritmo, como que num cinema de rimas da montagem.
Neste filme Varda conta as últimas impressões que uma jovem mochileira
causa entre alguns estranhos, e sugere como uma mulher sem maiores
laços e relações com a sociedade causa impressões de diversas
naturezas naqueles com quem convive de forma descompromissada
e casual. Varda mescla e revela essas considerações, que logo
estarão perdidas – e, através de uma montagem de felizes ou dolorosas
harmonias, expressa uma magia que vai bem além da utilização de
uma ferramenta técnica do cinema.
Os caminhos que seus enquadramentos tomam têm
um tempo e espaço próprios, e parecem construir uma espécie de
"estética da generosidade", nomeação talvez excessiva,
mas que parece caracterizar muito bem as suas imagens. No seu
emocionante depoimento no documentário Janela da Alma (2001),
Varda comenta dois de seus filmes – Jacquot de Nantes e
Les Demoiselles ont eu 25 ans – feitos após a morte do
seu marido, o cineasta Jacques Demy. Ela fala sobre essa particularidade
do seu objeto de filmagem, que nestes filmes é o próprio Demy,
e revela a sua vontade e a inevitabilidade de filmar uma cena
que só ela poderia ter feito, o que aqui é menos um certificado
de qualidade do que uma espécie de motivação do que leva um cineasta
a filmar.
A
câmera de Varda parece ser motivada por um desejo de ter uma existência
própria. Em muitos momentos manifesta-se a existência de um olhar
pessoal por trás do dispositivo, o que pode ser percebido por
uma câmera como aquela que acompanha as testemunhas que descobrem
o corpo de Mona – um olhar observador, de longe, porém não de
forma científica e fria, e sim que manifeste a subjetividade sugerida
de Varda. Talvez dessa impressão de uma subjetividade sempre presente
venha a sensação de que seus filmes têm um teor de autobiografia,
não porque falam de narrativas de um suposto mundo real da cineasta,
mas porque ela faz uso desse poder da observação, da manifestação
do seu olhar.
Les Glaneurs et la glaneuse, filme que
parte das famosas pinturas de catadores de milhos de François
Millet e de Jules Breton, é um documentário que chama atenção
nesse sentido: além de narradora dessas diferentes histórias de
catadores contemporâneos, Varda se envolve e se compara a eles,
sublinha essa relação se inserindo na imagem, colocando seu corpo
dentro do quadro. Estimulada por um aparato tecnológico que lhe
proporciona maior liberdade, com uma câmera que, mais do que nunca,
é sua companheira, ela nos relata sua surpresa e admiração com
o uso da tecnologia digital: filma suas mãos, suas rugas e a sua
pele já envelhecida, que lhe denunciam a chegada da morte. É com
o seu espírito ávido por descobertas que Varda deixa claro que,
além da famosa catadora pintada por Breton, o filme também conta
com outra catadora, ela mesma, em busca de histórias e imagens
captadas digitalmente.
Ao falar de diferentes catadores, Varda enfatiza
a sua exposição não só através de declarações e palavras sobre
si, mas vai para o mundo e desenvolve as suas interferências junto
dele, quando, por exemplo, a ouvimos cantando junto com a rapper
da música de fundo – o que é feito de uma forma discreta, sem
maiores anúncios. Não apenas pelo formato documental, e em parte
por realizar um documentário bastante poético, a diretora faz
estas "interferências" sem quebrar a diegese, acentuando
o seu envolvimento com a história que conta e com os seus personagens.
Afinal, se Varda também é uma catadora, a natureza desta interferência
é a da continuidade entre ela mesma e o mundo pelo qual se aventura.
Talvez
a definição de "fragmentos fotográficos" possa clarificar
algo do encanto do seu cinema. Assim como um de seus curtas (Ulysse,
na foto ao lado) conta a trajetória (ou uma espécie de vocação)
da fotógrafa que viria a se tornar cineasta, os seus filmes acabam
por apresentar esse percurso num sentido inverso: uma cineasta
que não quer abandonar o click, sempre presente em suas obras. Algumas
vezes estes fragmentos representam os olhares dos personagens,
em outras o olhar da cineasta, ou dos espectadores sobre os objetos
visuais. Varda os estrutura como espécies de fotogramas congelados
capazes de apreender os instantes dos personagens como, por exemplo,
a captação das reações de Cléo e sua amiga diante dos chapéus
nas vitrines das lojas parisienses: Cléo desejando-os, enquanto
sua amiga os observa com um olhar de rejeição, provavelmente achando-os
extravagantes demais para usá-los.
Esses fragmentos fotográficos por vezes funcionam
como câmeras subjetivas muito particulares e, por isso, raras.
É interessante perceber que, se por um lado as câmeras subjetivas
clássicas são raras em Varda, por outro, quando são utilizadas,
parece que são exclusivamente dos personagens. Suas subjetivas
são inesperadas, fragmentadas e delimitam uma seleção e ordem
elaboradas, como acontece em Le Bonheur. O filme conta
a estória de François, um homem que busca um estágio de maior
felicidade, de forma sincera e pura, junto da sua mulher e de
sua amante. Quando François e sua futura amante Emilie vão ao
Café Castel, eles flertam e já estão apaixonados e, como estão
desnorteados por estes sentimentos de paixão e desejo, os acontecimentos
à sua volta desviam a sua atenção, através do desconcerto comum
a uma nova paixão, ainda proibida, e sobre a qual não se possui
nenhum domínio ou conhecimento. A subjetiva aqui é só desses futuros
amantes. Eles se libertam das amarras da direção a partir de uma
câmera que, acima de tudo, lhes privilegia. Fazer de seus personagens
os proprietários quase que exclusivos de suas subjetivas é uma
forma de amá-los. E uma das principais razões que tornam os filmes
de Varda tão belos e originais é a fidelidade que ela tem aos
seus personagens: não há julgamentos, mas a defesa da verdade
de cada um. Como uma Dostoievski do cinema, temos vozes múltiplas
e independentes numa relação de igualdade.
Um ponto essencial, neste sentido, é a amoralidade
presente em seus roteiros. François explica com toda a inocência
o que é ter felicidade em dobro; Cléo sente prazer na ilusão e
diz "a feiúra é uma espécie de morte; sou linda, e por isso
estou viva"; Gizou, lá pelos seus quatro anos, bebe champagne
com seus pais. A felicidade não é julgada: é chocante ver Emilie
no lugar de Therèse, e de uma forma tão apropriada – estão tão
parecidas, fazendo os mesmos gestos. Ao pensar sobre a semelhança
entre as duas personagens, Varda lembra que no amor não há gestos
originais.
Esta fidelidade aos seus personagens faz do cinema
de Varda um espaço de atos autênticos, no sentido de que é através
do teor de liberdade desses que eles podem se salvar ou não de
um mundo opressor e cruel. Mas, apesar de não haver sucesso para
seus seres ficcionais, há amor e paixão. Seus personagens são
sobretudo livres: buscam sua felicidade (ou melhor, os seus desejos),
mesmo que esses sejam pela morte e estejam envoltos pelo medo.
Assim, por mais que tenham momentos de escape aos seus sentimentos,
eles retornam para aquilo que realmente desejam e para o que lhes
é importante.
Por tudo isso, Varda se define como uma
glaneuse, que garimpa delícias e dores do mundo. Ela transpõe
para o cinema aquilo que Raymond Radiguet diz em O diabo no
corpo: "a felicidade é egoísta", e revela uma obra
que luta pela felicidade e pelo prazer. Em meio a tantas incertezas,
sua resposta ao mundo.
editoria@revistacinetica.com.br
|