em primeira pessoa Desenhando
um panorama (ainda sobre a 11ª Mostra
de Cinema de Tiradentes) por Francis Vogner dos
Reis
Um novo ciclo No
horóscopo chinês, 2008 é o “ano do rato”. Encerra um ciclo de dez anos e começa
outro, até 2018. Provar cientificamente a veracidade dos princípios dessa tradição
astrológica é impossível. Mas é perfeitamente comum deduzir (e comprovar) que
uma história é feita de ciclos, com momentos de picos de exaltação e outros sem
mudanças substanciais, nos quais as coisas acontecem como reflexo de contextos.
A própria história do cinema brasileiro é assim, não por conta apenas da historiografia,
mas de maneira objetiva, constituída por meio de ciclos curtos e prolongados períodos
de afasia. A maior parte desses breves períodos foi de filmes e projetos estéticos
vigorosos, que muitas vezes não estavam em consonância com as exigências mais
ortodoxas do mercado. Dito isso, é necessário perguntar:
por qual período passamos? O que acontece hoje no cinema brasileiro? É possível
um diagnóstico de um novo momento ou um prognóstico do que está por vir? A Mostra
de Cinema de Tiradentes este ano, se não visou responder categoricamente essas
perguntas, propôs reflexão e discussão sobre elas. A proposta foi inclusive a
de encontrar questões novas, problemas novos, de virar a página, de dar início
a um novo ciclo a partir de um mapeamento da produção cinematográfica recente
em um aspecto amplo, não deixando de fora filmes e vídeos em razão do seus formatos
ou suas condições de exibição. Apesar de existirem outros
festivais de ousadia e originalidade, como o Cine Esquema Novo, certamente o conceito
da Mostra de Tiradentes, com curadoria de Cléber Eduardo, é hoje único no país,
com uma preocupação maior do que a mera exibição e competição de filmes contemporâneos.
Por isso, além da exibição desses filmes divididos em painéis diferenciados (Aurora,
Juventude em Trânsito, Vertentes) e do debate acerca deles, existe também a valorização
em Tiradentes de uma nova crítica (sobretudo de origem na Internet), que, a despeito
de contar com críticos mais perspicazes e/ou mais modestos, tem o esforço de pensar
sobre o cinema recente, de discutir as novas idéias e colocar em pauta recentes
tendências estéticas, ou seja, transformar o cinema realmente em um assunto vivo,
tratar o que é específico do cinema como assunto primeiro, sem o qual não existe
cinematografia alguma, mesmo que haja dinheiro e eventuais sucessos de público.
Por isso o trabalho em Tiradentes da Contracampo, da Cinética,
da Paisà, do Cinequanon e do Filmes Polvo não precisam ser festejados por serem
ou não brilhantes e prodígios, mas por restituírem o cinema ao cinema e fazerem
da crítica realmente uma crítica, goste-se dessas revistas e sites ou não. O trabalho
da crítica não é exatamente jornalístico (pelo menos não da forma como o jornalismo
é pensado – e praticado – em sua maior parte hoje em dia), mas ser testemunha
“crítica” e participante da história, algo diferente de somente legitimar um filme
ou comprometer o sucesso de uma obra. Elevar o nível do debate é tão importante
quanto realizar e exibir filmes. Idéias, provocações e discussões qualificadas
são o que de alguma maneira vai ajudar a dar forma ao panorama cinematográfico
que se configura. Dar cara e corpo a uma geração não é um
processo natural que se faz sozinho, mas é uma coisa organizada. É no debate,
nos conflitos e nas descobertas que as coisas se colocam em perspectiva, que as
tendências se alinham, que as sintonias se equalizam. É no contato e no confronto.
Enfim, no esforço de dar nome às coisas. Isso viu-se em Tiradentes. Uma disposição
de exigir do cinema tudo o que ele pode dar. Uma
postura crítica em constante renovação Uma nova
geração aparece, isso é certo, mas é preciso cautela e coerência pelo menos da
parte dos que se assumem críticos. Longe de uma comemoração cega de alguns filmes
de certo vigor e de projetos estéticos executados com astúcia, é indispensável
um olhar crítico, menos no sentido da análise fílmica propriamente dita, e mais
na atitude de se conseguir ver esse novo panorama e seus filmes a partir também
de suas deficiências e fragilidades. A constatação de uma nova geração não é um
gesto salvacionista, mas sim a compreensão de uma renovação, de arejamento, de
alguma juventude necessária para a sobrevivência do cinema. Ao
passo em que comemoramos o que é autenticamente novo e corajoso em termos estéticos
e de produção (o que se prova uma operação inseparável), é coerente, sempre, exigir
mais do cinema. É necessário discutir, por exemplo, que o documentário Crítico,
de Kléber Mendonça , carece de ultrapassar a mera dicotomia “crítico versus realizador”,
e mesmo borrá-la, porque, aliás, ele mesmo é um crítico que faz filmes. Assim
como podemos apontar que em Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro,
a dramaturgia em certos trechos não passa somente de um artifício para a execução
do plano-sequência, o que faz com que o seu natural desequilíbrio penda mais para
o fetiche em alguns momentos específicos do que para o gosto do experimento; ou
mesmo se pode comprovar que os excessos estilísticos de Meu Mundo em Perigo,
de José Eduardo Belmonte (as polaróides, a câmera trêmula, a irrupção inesperada
das músicas), correm o risco de eclipsar sua real força, que reside em um registro
físico das emoções. Em outras palavras, cria o descompasso entre a intervenção
programada e a vitalidade essencial de um procedimento que, se não deixa também
de ter algum controle, aspira a um processo – daí inclusive a importância do trabalho
com os atores. Bruno Safadi, estreante no longa-metragem com Meu Nome é Dindi,
é um artista de coragem, mas temos de esperar seus próximos trabalhos para constatar
sua evolução além da “síndrome das influências” (bem digeridas e trabalhadas,
que se diga) sob a qual filmou seu primeiro longa. Essas
observações não são uma atitude de “jogar areia na pesca”, mas de estabelecer
um diálogo a partir dos problemas apresentados, para que haja realmente (e democraticamente)
um debate para além da legitimação de novos cineastas. Diferente de um filme que
é um objeto pronto e acabado, a crítica pode voltar a ele, seguidas vezes, sempre
num debate generoso, mas sem concessões. A própria crítica, em um anseio de responder
aos filmes instantaneamente durante o festival, deixa passar uma série de questões
e problemas importantes na apreciação de um filme ou na visão geral do conjunto
deles, o que é comum devido a rapidez necessária a uma cobertura. Os próprios
curta-metragens em video e película são em boa parte preteridos com relação aos
longas (auto-crítica) e muitas vezes são mais fortes e impactantes do que os longas.
Como por exemplo, Corpo Presente: Beatriz, de Paolo Gregori, o melhor
filme do festival. Uma mostra como a de Tiradentes propõe
crítica e reflexão em seu conceito, mas as coberturas realizadas também são relatos
de experiências imediatas, de pensamentos geridos no calor da hora, o que não
deixa de ser indispensável e impossível de se fazer a não ser in loco.
Mas essa constatação propõe uma série de posturas por parte da crítica: vigilância,
auto-crítica e revisão. Se a crítica não colocar os “senões” e os “apesar de”,
seu trabalho é um esforço de reflexão pela metade. O
trânsito das novas idéias Diferente do texto
do Felipe Bragança sobre a Mostra de Tiradentes deste ano, envolvido e apaixonado,
este pede cautela e um pouco de distanciamento. Se é autêntico um olhar de dentro
de um crítico que também é realizador (Felipe debateu, mediou uma mesa e começa
agora seu primeiro longa), é legítimo também um olhar de fora, talvez mais frio,
mas que não supõe por causa disso falta de sinceridade. O
que temos em princípio é uma geração de realizadores de interesses heterodoxos
e caminhos estéticos diferentes. Não existe defesa de posturas estéticas em comum,
sequer uma mentalidade de grupo. O que temos são diretores com um desejo de cinema
diferente do que muito se viu nos últimos dez anos, o que estimulou muitas vezes
os cineastas (nas falas de apresentação de seus filmes na mostra) a defender seus
filmes como uma alternativa ao que se fez antes, seja na defesa de um cinema possível
longe dos grandes orçamentos (Daniel Bandeira, de Amigos de Risco), seja
na negação de um cinema que vê nas reconstituições históricas verdades em si mesmas
(Rubens Rewald e Rossana Foglia, na apresentação de Corpo). Nove
dias em Tiradentes foram o bastante para se testemunhar que existe sim um novo
panorama do cinema brasileiro contemporâneo, e o melhor de tudo isso: há um deslocamento
do interesse a cerca da significação (da necessidade, da prioridade) do cinema
para essa nova geração. Um princípio norteador é um valor que pelo menos nos últimos
15 anos não foi uma preocupação primeira na maior parte das discussões a cerca
da “retomada”: é necessário que os filmes existam, é preciso que eles sejam feitos,
sem a preocupação de que ele se insira num nicho de mercado. Ivo Lopes Araújo
usava as palavras vontade e desejo: vontade de contato, expresso hoje em Fortaleza,
com diretores influenciados por cineastas do mundo inteiro e estudando uma série
de coisas de modo autônomo. Daniel Bandeira ressalta o enfado com o “padrão de
qualidade”, com a tentativa desesperada de se chegar ao público, enfim, sem medo
do que ele chama de sub-captação. A 11ª Mostra de Cinema
de Tiradentes abriu um novo ciclo, é verdade. Ela passou, mas as questões levantadas,
os filmes vistos e o cinema que foi discutido ainda mal começaram a caminhar e
dar frutos. Há um longo caminho a se percorrer. Coisas novas estão acontecendo,
mas é bom lembrar que problemas antigos ainda persistem e é necessária uma vigilância
para que não se cometa velhos erros. Por isso, não há dúvidas que será preciso
voltar à 11ª Mostra de Tiradentes ainda muitas outras vezes. Assim, é bom lembrar
e relembrar: ainda é só o começo. Fevereiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|