in loco - festival de brasília 2009
Quinto dia: Inversão térmica nas mostras de Brasília
por Francis Vogner dos Reis

Assim como nos outros dias tivemos os curtas Bailão, Água Viva, Os Amigos Bizarros do Ricardinho e Dias de Greve, a noite do quinto dia foi de Recife Frio, de Kléber Mendonça Filho. Evidências que nos levam a crer para além de qualquer dúvida que, se precisamos localizar aonde pulsa o cinema feito no Brasil hoje, este capítulo da História do cinema brasileiro deverá ser escrito a partir dos curtas-metragens. Marginaliza-se assim, legitimamente, boa parte da produção dos longas contemporâneos que, salvo exceções, vem à luz com atestado de óbito, cabendo à resignada e deprimida crítica fazer o laudo sobre o misterioso caso de decomposição avançada dos filmes – que, como os bebês da Cubatão dos anos 80, quando não nascem mortos, nascem sem cérebro. 

O longa da noite na mostra competitiva foi o novo filme de Geraldo Moraes, O Homem Mau Dorme Bem. O que há a se dizer dele? Há algumas coisas. Mas essas coisas diriam menos respeito a sua natureza específica do que a sua condição no panorama geral dos filmes feitos hoje. É um filme que pede encarecidamente por uma valoração que use termos como “precário”, “ruim”, “equivocado”, mas para ser honesto com o filme – já que mesmo os péssimos filmes carecem de honestidade por parte do escriba – seria necessário tecer argumentos para além dos adjetivos negativos. O fato é que, para ser mais honesto ainda, um filme como O Homem Mau Dorme Bem agrega tantos equívocos (dentro do filme, no seu entorno e a partir dele) que ser seu interlocutor – inclusive para detratá-lo – é desperdício de tempo e energia, em um festival onde se faz uma cobertura diária. A crítica não deveria – e nem precisaria – dizer professoralmente quais são os problemas de um filme. O dever de qualquer cineasta é pensar as imagens, os seus procedimentos, as suas escolhas. Se ele mesmo não faz isso, a crítica realmente não serve pra nada.

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Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho (PE)

Mas não é a ausência de filmes de mais força e coragem na competição de longas aquilo que eleva Recife Frio a um patamar um pouco superior aos filmes do festival de modo geral. O curta-metragem de Kleber Mendonça Filho tem um entusiasmo fundamental: é como se cada imagem que nos remete a outras imagens (de filmes, principalmente) passasse por uma transfiguração. Mesmo que cada plano, operação, composição e encadeamento nos remeta a outros cinemas e cineastas, as implicações são muito particulares e essas particularidades o tornam especial. Assim como nos outros filmes do diretor, é difícil de enquadrar Recife Frio em tendências correntes da produção contemporânea internacional, assim como também não é possível dar valor a ele por meio de uma identificação regional que muitas vezes tem conotação generalista e pejorativa (como a de “cinema pernambucano”), levando-se em conta que isso geralmente apaga particularidades e nivela todos os trabalhos como se eles fossem da mesma lavra.  

O mundo, no cinema que Kléber Mendonça faz, é sujeito ao absurdo das coisas corriqueiras: pode ser na assombração de uma lenda urbana na escola, numa relação simbiótica entre pessoas e eletrodomésticos, no mistério suscitado por um presente de mãe para filha. Mesmo Noite de Sexta, Manhã de Sábado tem um tom fabular, no encontro e no desejo de proximidade entre duas pessoas separadas pelo oceano. É uma pequena crônica noturna e, como já vimos em outras crônicas noturnas do cinema (Depois de Horas, Into the Night), mesmo as situações mais comuns ganham uma dimensão estranha que não aparece separada de seu encanto. É interessante que o ordinário seja visto do avesso (colocando em evidência) o fantástico e o absurdo sem, necessariamente, lançar mão de escolhas dramáticas e cênicas muito complexas. O segredo está em sua simplicidade, que tem mais a ver com a clareza e a objetividade com que ele mostra todas as coisas, do que pela parcimônia de produção e conceito. O diretor opta, sempre, pelo elementar. 

Ao mesmo tempo em que Recife Frio se faz como um disaster movie, ele adota um mote de documentário de TV a cabo – no caso, um documentário argentino sobre uma queda radical de temperatura em Recife. Impressiona, sobretudo, a reação arbitrária dos personagens da cidade ao frio: o absurdo das suas ações, como a invasão antológica das pessoas no shopping (ao som da sétima de Beethoven) ou o garoto que vai para o quarto minúsculo e mais aquecido da empregada, enquanto ela vai dormir em sua suíte gelada. A função de um filme sci-fi – e Recife Frio é consciente disso – é menos trabalhar uma fantasia catastrófica, futurista e sem nenhuma relação com a realidade, do que fazer um prognóstico livre sobre o absurdo de viver em um mundo colateral como o nosso. Todas essas cenas insólitas são reações naturalmente possíveis caso algo de tão estranho como isso acontecesse de verdade. Recife Frio é um filme do nosso tempo, sem precisar de adornos que o façam parecer contemporâneo, e por isso não pede qualquer atestado de legitimidade que seja externo ao filme. O que o justifica está na tela e, se o que está lá ressoa o estado das coisas no mundo, o cinema encontra a sua vocação. Essa é a busca de todos os filmes.

Novembro de 2009

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