in loco - cobertura do Festival do Rio
Primeiro dia no Festival: Man Push
Cart; três mortes em cena
por Cléber Eduardo
Man Push Cart,
de Ramin Bahrani (EUA/Irã, 2005) - Expectativa
Ipanema, início da tarde. Sessão semi-vazia. Primeiras
imagens de festivais têm um efeito diferente sobre quem sabe estar
no início de um longo processo de mergulho no cinema. Podem carregar
algum sentido oculto para nossa experiência com a programação. Alívio,
portanto. Man Push Cart torna-se, sem esforço, "o
filme” do primeiro dia.
Temos
mais uma aproximação, entre tantas no cinema contemporâneo, com
a figura do estrangeiro. Ele é Ahmad, um roqueiro paquistanês,
que, para sobreviver em Nova York, faz bicos aqui e ali. O rapaz
tem um trailer de comida "típica" e pinta paredes para
os bacanas. Nos intervalos, flerta com uma espanhola, que, embora
dê mole, sai com "outro". Esse é o resumo dos acontecimentos.
Dificuldades e afetos vividos por um paquistanês na América –
quase um clichê temático de mostras e festivais, embora, em mostras
e festivais, alguns clichês sejam produzidos pelo momento
do mundo. De qualquer forma, a maneira de lidar com essa premissa-clichê
desse momento do mundo, por assim dizer, não é nada óbvia. O diretor
americano de origem iraniana Ramin Bahrani, hoje com 31 anos,
agora em seu segundo longa-metragem, não faz de seu protagonista
onipresente objeto de denúncia, tampouco vítima de uma sociedade
com dentes cerrados. Ele acima de tudo cola a câmera em seu personagem
central menos para tomar emprestada a subjetividade dele e mais
para nos introduzir com tranqüilidade no universo no qual ele
transita.
Se parece ser vizinho do universo dos irmãos Dardenne,
Man Push Cart toma outro rumo, preferindo a pegada blasé
no lugar do enfoque adrenalinado, sem com isso cair em efeitos
afetados de cinema de arte. O tom é sóbrio, quase minimalista
em sua dramaticidade, com momentos de silêncio, uma instrospecção
sem psicologismo, buscando mais climas que informações ou constatações,
sempre com a câmera discreta em sua elegância, sempre apoiada
na sintonia homem/espaço e ator/personagem.A ficção observacional
aqui procura conciliar estilo com contato com o mundo. Muita câmera
na rua, integrada ao espaço público, trazendo o som da cidade
para experiência subjetiva do protagonista. Habilidade para compor
situações que, embora não pareçam ter nascido na seqüência anterior,
também não se constituem como fragmentos isolados, pois, mesmo
sem avançar a narrativa, ajudam a compor uma atmosfera. O contexto
histórico, pós-ataque ao World Trade Center, está lá inevitavelmente,
mas não engole o personagem, nem explica tudo. O preconceito sofrido
pelo protagonista por conta de sua origem é aludido em dois diálogos
apenas, ambos com um compatriota, no qual ouvimos sobre a situação
delicada dos paquistaneses após o 11 de setembro.
* * *
A Morte em cena
Ruidos, de Marcelo Bertalmío (Uruguai/Espanha/Argentina,
2005) – Première Latina
A Ponte (The Bridge), de Eric Steel (EUA, 2006)
- Expectativa
Les Filles du botaniste, de Dai Sijie (França/Canadá, 2006)
- Panorama
Três filmes em um mesmo dia que têm a morte como
desfecho. Em Ruído, do uruguaio Bertalmío, o tom é cômico.
Após ser interrompido em sua tentativa de suicídio, o protagonista,
uma caricatura do desastrado, panaca e perdedor (assim definido
em diálogos), vira a mesa de maneira insólita, primeiro a partir
de um aparelho celular esquecido em uma praça, depois por conta
da experiência como fiscal de ruídos em Montevidéu. O processo
terapêutico de absorção mais intensa e ativa da vida termina com
a piada construída lá no início. A morte evitada pelo acaso retorna
pelo acaso, mas agora completamente resignificada, sem o sentido
inicial de impotência e resignação.
Também é da morte para a vida o percurso estético
do filme, começando com uma tosquidão burocrática de arranhar
a retina e ganhando no terço final uma agilidade de câmera e cortes,
que, embora pareçam ser frutos de alguma mudança na equipe ou
mesmo do diretor, na verdade é claramente uma alteração conceitual
do filme, de modo a estabelecer uma sintonia das opções de enquadramento
e ritmo com a vitalidade obtida pelo protagonista sorumbático.
No geral tosco, sim, descaradamente, sobretudo no esforço de fazer
humor na imagem – mas, dentro dessa tosquidão, muito simpático,
talvez até pela ingênua crença em seu material não menos ingênuo.
A título de amostragem de cinema do Cone Sul, de um país apenas
recentemente inserido na vitrine internacional (com Whisky),
tem lá seu interesse, mas não passa disso de forma alguma.
Em A Ponte, a morte é atração. O estreante
em cinema Eric Steel, estimulado por uma reportagem sobre a grande
quantidade de suicídios cometidos na ponte Golden Gate, em São
Francisco, captou duas dezenas de corpos se atirando em 2004.
Observacional mórbido, à espera do salto, na torcida pela morte,
sem a qual, afinal, não haveria material para o filme. Essa é
a única questão interessante ali, que, embora mova cada imagem, não
é levantada ou problematizada na narrativa. Até onde a imagem
pode ir? Haveria limites para ela? A imagem da morte, como defendia
Bazin, é imagem proibida? Steel retém os últimos momentos das
vidas de seus personagens fantasmas, torna-os públicos e eterniza
assim uma imagem-estigma para as vidas de cada sucida ali tematizado
ou exibido. É o espetáculo de "denúncia do anormal",
de prova do limite do homem-doença, incapaz de lidar consigo e
com os outros, explicitação do sinal de "derrota", sem
nenhum respeito pelo sofrimento de quem optou por um fim radical,
sem saber que estava sendo filmado. Ninguém ali queria uma câmera,
tornar-se atração visual, mas, na tela, os saltos são resignificados.
Invade-se a intimidade pública dos suicidas, reduzindo o gesto
à uma imagem, à uma exterirização física, a um movimento, sem
nenhuma licença dos protagonistas silenciosos.
Pelas informações colhidas na internet, Steel pediu
autorização para filmar a ponte, durante um ano, mas mentiu sobre
seu objetivo. Também não avisou as famílias e amigos que
tinha as imagens derradeiras dos mortos. Quando não filma
os saltos, Steel ouve as pessoas próximos dos mortos, de forma
impessoal e burocrática, nos dando a ouvir um desfile de diagnósticos
de casos de depressão. Todo seu investimento está na maneira de
filmar a ponte, de ângulos diferentes, sempre para constuir um
ícone mórbido. Parece clara sua intenção de alimentar nossa sede
de imagem da morte para depois saciá-la de tempos em tempos.
Essa estratégia é mais evidente pelo uso de um dispostivo narrativo,
pelo qual está sempre mostrando um roqueiro, do qual muito se
fala no filme, andando pela ponte e encostando-se no parapeito.
O objetivo é criar suspense (atira-se ou não?), mas, como saberemos
que ele se atirou, pelos depoimentos dos amigos, o suspense torna-se
outro (veremos ou não ele se atirar?). Por que essa imagem, como
imagem de suspense, e não uma outra? Porque essa é a mais espetacular,
pela forma com a qual o roqueiro se joga, com um jeito performático,
de salto com estilo. Opção estética e dramática de um filme-vampiro.
Já em Les filles du botaniste, de Sai Sijie
(diretor de Balzac e a Costureirinha Chinesa), a morte
é punição. Nesse sentido, filmar sua razão é atitude política,
pois visa criar antagonismo entre a liberdade de ação das personagens
e as consequências dessa ação junto ao Estado (a China). Duas
jovens mantêm um romance clandestino em uma ilha chinesa e, quando
descobertas pelo pai cientista de uma delas, vão parar no
final em um tribunal, ganhando a morte estatal como castigo. Para
opor-se a essa condenação, o filme carrega no elogio suntuoso
da vitalidade, com planos obsessivamente empenhados em produzir
beleza com a luz e sensualidade, com a aproximação da câmera em
relação aos corpos, frequentemente com uma elegância maneirista de câmera,
recuando em travelings nem sempre com alguma razão de lá
estar.
Sijie assume sua posição estética de continuador de
Zhang Yimou (no enfoque sobre a mulher oprimida e na construção
de um universo estetizado), ostentando em cada imagem de "bom
gosto" e de "bom olho" na composição do quadro
uma militância pelo cinema chinês de qualidade (altamente consciente
dessa sua condição), que, se torna tudo agradável para a vista,
tem como efeito um esvaziamento dos personagens em benefício da
plástica retumbante. São óbvias as analogias políticas, por meio
de dicotomias entre dentro e fora, homem e mulher, desejo e autoridade.
A família sofre uma ruptura em nome dos avanços culturais, mas,
patrulheiro da tradição imposta, o Estado, extensão da família
e da força masculina, condena as rebeldes a pagar com a vida.
Cheio de pose em vários momentos, Les filles du botaniste,
para seduzir o coração do Ocidente, atola-se em uma trilha-sonora
repetitiva, quase religiosa, meio Celine Dion.
Nesses três filmes de culturas tão distintas,
com tratamentos tão díspares, a morte também ganha diferentes
sentidos dramáticos. É libertária em Ruido, em sentido
amplo: se todos morreremos a qualquer hora, que aproveitemos a
vida a cada momento. É um show em A Ponte: se cada suicida
escolhe se atirar em público, então, que mostremos ao público
esse gesto radical. É uma forma de se reprovar uma cultura
e de um regime de censura aos prazeres e desejos em Les
filles du botaniste: se o preço a ser pago pela liberdade
na vida for a morte que a morte seja um sinal de afirmação da
vida. Nenhum desses filmes, contudo, pulsa de vitalidade. Pelo
contrário, em graus diferentes, são moribundos. Ruídos
sofre de primitivismo estético, A Ponte é acometido
da ausência de anti-corpos para lidar com a ética da imagem (e
goza por transgredi-la), Les filles du botaniste sofre
a overdose da beleza a qualquer custo.
editoria@revistacinetica.com.br
|