in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Dia dos Pais, de Julia Murat e Leonardo Bittencourt
(Brasil, 2008) por Fábio Andrade
Em
seus primeiros 50 minutos, Dia dos Pais assume uma estrutura de road
movie para transitar em uma área marcada por dias mais prósperos: o Vale do
Paraíba. Não existe, porém, no filme, intenção de pensar esses lugares pelos seus
dias como pólos econômicos, mas sim de se instalar nesses espaços para olhar a
poeira que cobre as pegadas do passado. Em vez de pensar o passado a partir do
presente, tentar compreender o presente como resultado de um passado. Se essa
idéia de registro faz pensar nos filmes de Jia Zhang-ke (cineasta que, com Em
Busca da Vida, In Public e Plataforma, vem fortemente à cabeça durante
a projeção), Dia dos Pais se diferencia por ser, sobretudo, um filme “atrasado”.
Seu segundo plano sintetiza muito da relação que atrairá
maior interesse ao longo de todo filme: a câmera é colocada no meio de uma rua
de terra enquanto, ao longe, vemos um homem carregando os restos de uma árvore
derrubada. Na banda sonora, ouvimos um morador falar, fora de quadro, sobre como
a cidade se configurava na década de 70. Na imagem, porém, o homem pára, re-amarra
seu feixe de galhos e, desviando levemente seu curso, pede licença ao passar pela
câmera. O plano é essencial, pois já desenha a dupla relação que será pensada
constantemente na construção do filme: a intrusão de um olhar destacado, quase
científico, sobre um lugar e seus habitantes; e a percepção de que, em todos esses
lugares, o filme chega, sempre, atrasado em relação aos acontecimentos que os
determinam. Os espaços e os personagens de Dia dos Pais são marcados por
um passado que se põe fora do filme, mas que afeta tudo que vemos na tela. Esse
atraso constante é presente tanto na construção de som fora de quadro, quanto
na sua mais expressiva metáfora visual: o trem – imagem de modernidade recorrente
no cinema desde a chegada à estação, de Lumière, e pensada, aqui, de forma semelhante
à de Jia Zhang-ke em Plataforma. É o seu desaparecimento que marca a decadência
da cidade na primeira fala, e é o retorno desse ícone que virá reconfigurar vários
dos planos do filme. Em
um deles, vemos a conversa de três moradores ser interrompida pela passagem do
trem. Eles esperam, em silêncio, até que o movimento se complete para recomeçarem,
assim, seu papo. A impressão de que olhamos pessoas que tentam resistir ao movimento
do mundo industrial é reforçada pela câmera quase sempre estática, pela duração
dos planos e pela imutabilidade aparente da paisagem. Assim como Cao Guimarães,
em Andarilho, Julia e Leonardo buscam significado na oposição visual de
vetores em movimentos (as pessoas e os meios de transporte) sobre uma tela essencialmente
fixa (a paisagem e, sobretudo, o enquadramento). Em
seus primeiros 50 minutos, Dia dos Pais desconstrói sua própria natureza
documental, pois se os documentos normalmente têm a intenção de registrar momentos
definidores, o filme está sempre correndo atrás de uma História que insiste deixá-lo
para trás. Assim como o filme parece só trazer o pós-acontecimento – mesmo que
eles sejam micro acontecimentos, como a funcionária que recolhe as cadeiras de
um bar; a passagem não filmada do vice-prefeito pela cidade onde a equipe está;
o rastro de poeira deixado pela partida de um ônibus; um poste que se apaga –
a inclusão desse suposto “fracasso” documental no filme é interessante, pois move
a decisão de olhar para o que restou. Nesse sentido, é ilustrativo um plano em
que a equipe persegue, de carro, o trem que corre ao seu lado, como o filme parece
caçar uma História que não se deixa pegar. Em
toda essa convivência de tempos distintos – pois um dos grandes méritos da estrutura
de Dia dos Pais é trazer para o presente uma presença invisível, mas muito
forte, do passado – é um tanto irônico que o filme perca seu rumo justamente quando
presencia um choque temporal. Em uma de suas várias viagens de carro, a equipe
é obrigada a parar ao ver a estrada tomada por um rebanho de vacas. O impasse
inicial gerado por esse embate de tempos e movimentos distintos (as vacas de um
lado, o carro e a câmera de outro) por um minuto sugere os momentos de crise que
sempre rasgam os filmes de Abbas Kiarostami (a luz que acaba em ABC África,
o jabuti em E O Vento Nos Levará...). Porém, o incômodo desse duelo de
mundos cede espaço, aqui, a uma rememoração de Julia a Leonardo, lembrando como
ela costumava brincar de contar vacas quando, ainda pequena, passava por aquela
estrada. A partir dessa ruptura, Dia dos Pais deixa
de se concentrar no tempo já passado e se transforma, de forma que parece mais
brusca à medida que a virada se revela menos interessante, em uma tentativa de
Julia em reconstituir a história de sua família. Embora vários filmes ganhem força
ao incorporar o processo do realizador em sua montagem (pensemos em toda a obra
de Eduardo Coutinho), em Dia dos Pais, essa invasão do espaço observado
machuca o filme, pois insere um novo dispositivo que, até aquele momento, ainda
não se apresentara. Essa inserção é prejudicial, pois se a intenção do filme era,
desde o início, reconstituir uma trajetória familiar, o cuidadoso olhar que norteia
as reflexões espaciais de seus primeiros dois terços passam a parecer mero acidente.
A observação de lugares abandonados por uma certa história
se torna distração ocasional; desvio de rota em uma jornada de intenções outras.
A câmera, até ali tão cuidadosa e pensada em sua maneira de se relacionar com
aquele universo, perde o rigor ao tentar simular uma proximidade, ao tentar interagir
com um universo que não parece verdadeiro ao filme. A sobreposição de uma questão
particular sobre um espaço até então pensado enquanto organismo desestabiliza
o espectador, mas essa desestabilização é frustrante, pois sua consideração pelo
dispositivo parece empurrada em um filme até então movido por preocupações outras.
O que parece faltar, em Dia dos Pais, é a percepção, por parte dos diretores,
de que o melhor filme guardado em seu material não era exatamente aqueles que
eles saíram de casa para fazer. Março
de 2008
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