in loco
Diário de Cannes - Dia 10
por Eduardo Valente

Juventude em marcha, de Pedro Costa (Portugal/França, 2006) – Competição

Sem dúvida: o Festival já está passando de uma semana com 4 ou 5 filmes sendo vistos por dia, pouco sono, pouca comida, muito cansaço. Sem dúvida: não é o melhor momento, especialmente no começo da noite, para se assistir um filme radicalmente diferenciado como este novo trabalho de Pedro Costa. Mas, mesmo que se busque todo tipo de desculpa, é difícil compreender como a imprensa "especializada" em cinema pode ter um comportamento como o visto na sala Debussy de Cannes, na noite desta quinta-feira. Com pouco mais de meia hora de filme (cuja duração é de duas horas e quarenta - informação que certamente assombrava a cabeça destas pessoas), uma imensa parte do público presente nesta sessão fechada para a imprensa se retirou em batalhão - a maior parte durante um longuíssimo plano de diálogo entre dois personagens. Não é nada de novo, muito pelo contrário, é algo que se vê em Cannes anualmente - últimos exemplos foram Brown Bunny em 2003, e em menor quantidade, mas também impressionante, Batalla en el cielo e Last Days no ano passado. Basta o filme fugir levemente do que esta imprensa considera ser "cinema" (uma noção muito fechada, uma vez que não inclui os filmes mais comerciais, e se resume a um determinado "cinema de autor" pré-formatado), que ela foge assustada, correndo até. O que explica o receio cada vez maior de se colocar filmes não-formatados na competição de Cannes, deixando eles "protegidos" no Un Certain Regard, Quinzena, Semana da Crítica ou até mesmo fora de competição - onde a principal diferença é não ter a tal cobertura doentia da imprensa. Juventude em marcha representou o papel do "boi de piranha" não-conformista do ano.

Aceitar este convite está longe de ser o mais corajoso ato de Pedro Costa, realizador cuja visão de cinema vai se consolidando a cada filme. Neste novo trabalho, ele demonstra a forte influência de seus dois últimos filmes, No Quarto da Vanda e o documentário sobre o casal Jean-Marie Straub e Danielle Huillet. Do primeiro, Costa manteve o mesmo ambiente, alguns personagens (inclusive Vanda) e uma determinada forma de trabalhar com os planos fixos longos. Do segundo, entra em cena uma forma de interpretação que se assemelha muito ao dos filmes do casal francês, principalmente na maneira de declamar que vemos na fortíssima cena de abertura. Nos lembra especialmente Gente da Sicília, filme que o casal finalizava quando Costa os documentou, principalmente no tratamento da palavra (aqui o português mestiço dos imigrantes africanos e das "favelas"). O que Costa adiciona de novo no seu trabalho aqui é uma estilização no tratamento da luz e sombras, e do enquadramento, ausentes de Vanda. Esta estilização cria um segundo distanciamento, com um resultado estético que pode, sem medo, ser considerado o grande choque visual do Festival - choque que, como vimos, a crítica estava longe de poder assimilar. O filme realmente se torna um pouco cansativo na sua meia hora final, na reiteração das cenas que constróem o ambiente humano e geográfico onde trafegam os poucos personagens do filme. No entanto, durante pelo menos sua primeira hora e meia, há um frescor inesperado na sua desesperada narrativa de um grupo de pessoas totalmente abandonado à sua própria sorte, construindo laços afetivos inesperados e maneiras de continuar vivendo (das quais a mais bela é a muitas vezes repetida carta a uma mulher distante), mesmo nas condições mais inóspitas. Certamente um cinema que não concilia a realidade que retrata (sem naturalismos redutores) com as facilidades da linguagem do cinema clássico, até porque não poderia fazê-lo com um mínimo de honestidade. Um filme a se analisar ainda com muito mais calma.

Dois PS, sobre o filme de Pedro Costa: surgiu um rumor de que Wong Kar-wai teria adorado o filme e que ele era um dos favoritos à Palma, mesmo com a intensa agressividade com que foi recebido pela imprensa. Seria, sem dúvida, o prêmio mais polêmico desde que Maurice Pialat foi vaiado com seu Sob o Sol de Satã.
Na entrevista coletiva (uma das que menos atraiu jornalistas, até porque se deu ao mesmo tempo que a sessão de United 93 - deixado de lado para ser visto no Brasil), Costa falou longamente sobre o filme, e teve pelo menos duas sacadas geniais: primeiro ao dizer que não lê muito e por isso não se interessaria em adaptar literatura para o cinema, mas que adoraria adaptar música: "quem sabe fazer uma adaptação para o cinema do disco Innervisions, de Stevie Wonder..."; depois disse que passou a filmar em digital para poder perder tempo, e não ganhar como a maioria alega - completando que aconselha Jean-Marie Straub e Danièle Huillet a migrarem para o formato, sempre que fala com eles.

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Quand j'etais chanteur
, de Xavier Gianoli (França, 2006) – Competição

Curiosíssima combinação esta montada pelo Festival de Cannes para o seu penúltimo dia de competição: depois do filme mais radical, o mais convencional da seleção. Ou melhor, o mais perto do "cinema popular" (uma vez que alguns dos esforços de autor foram até bem mais convencionais, no sentido estrito da palavra). Claramente um veículo para Geràrd Depardieu (algo que estava já admitido pelo diretor da seleção do Festival, Thierry Fremeux, na entrevista que é divulgada junto com a seleção), o filme até tem uma primeira hora bastante forte, levantando um interessante personagem e ambientes absolutamente fora de moda (um cantor de bailes), sem cair na banalidade de rir-se deles e nada mais. É um papel de clara auto-paródia de Depardieu, assumindo que o tempo passa e ele não tem mais como esconder isso. Na primeira metade, então, o ritmo da história do cantor e sua paixão pela jovem interpretada por Cécile de France carrega o filme com bastante frescor e uma melancolia ácida. Na segunda parte, quando a história começa a carregar no tom dramático, o filme perde bastante de sua força, mantendo no entanto a dignidade no trato com os personagens e apresentando um exemplar convicto do cinema mais narrativo que vimos em Cannes este ano.

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Z odzysku, de Slawomir Fabicki (Polônia, 2006) – Un Certain Regard

Há um inegável prazer sádico em confirmarmos algumas vezes o talento único de certos cineastas, ao vermos alguns que tentam "copiá-los" (talvez fosse mais educado falar "serem influenciados", mas é o final do Festival, estou cansado para conseguir ser educado), e que ao tomarem tal caminho nos deixam ver como a essência do cinema destes cineastas não será jamais captada por quem tente apenas usar de suas figuras de estilos - sem o talento, e sem a configuração entre estética e conteúdo que eles fazem. Alguns dos mais comumente copiados são David Lynch e Glauber Rocha, por exemplo. Este longa de estréia polônes mostra que o cinema dos irmãos Dardenne já vai ganhando espaço suficiente no cenário internacional do cinema para começar a ser (mal) copiado. Ficamos aqui com a câmera na mão constante que segue os personagens, a estética naturalista de interpretação e arte, os temas sobre as dificuldades econômicas de uma determinada classe proletária. No entanto, não se vê em lugar nenhum o olhar para o mundo grandioso dos irmãos belga, que se recusam sempre a encontrar fronteiras entre Bem e Mal, ou buscar explicações rasas para os complexos comportamentos humanos. Sobra então um cinema que parece apenas casca vazia de estética "naturalista", mas que repete todo o moralismo de um cinema convencional, onde um inocente que sai da linha precisa pagar o preço do mal passo. Catolicismo nos dois casos? Talvez, mas certamente a teologia dos irmãos belga é a do perdão capital, enquanto a do jovem polonês é a da punição inclemente.

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A scanner darkly, de Richard Linklater (EUA, 2006) – Un Certain Regard

Primeiro uma observação já guardada há algum tempo: tem algo de completamente surreal em ver aparecer o logo da Warner antes de um filme, e aí ele se transformar no logo de algo chamado Warner Independent. A simples associação destas duas palavras mostra que o termo "independent" realmente não serve mais para indicar muita coisa - na Quinzena dos Realizadores, por exemplo, o material de imprensa de um dos filmes dizia que ele foi feito fora dos círculos do cinema independente americano, para poder reinvindicar sua autenticidade.

Feita a observação necessária, vamos ao segundo filme de Linkater no festival deste ano. Uma adaptação de Philip K. Dick, A scanner darkly levou alguns anos em produção, principalmente porque usa o mesmo complexo processo de finalização por animação em rotoscopia, que Linklater já tinha usado em Waking life. Desta vez, os papéis principais do filme "animado" são interpretados por Keanu Reeves, Robert Downey Jr. (presentes ao Festival, o que deu direito ao filme de ter uma entrevista coletiva - algo que não acontece com os filmes da Un Certain Regard), Woody Harrelson e Winona Ryder. A bem da verdade, de Waking life este novo filme traz de volta o palavrório quase incessante, mas há pouco aqui que justifique a opção pela rotoscopia, em oposição a fazer um filme com atores. De fato, há apenas um efeito visual mais marcante (o da roupa que os agentes secretos do filme usam e que muda de aparência a todo instante), que não chegaria a ser um desafio para equipes de efeitos visuais em pleno século XXI. Com isso, me parece que a opção pela animação acaba sendo intrinsecamente equivocada, porque muitas vezes distrativa da narração, mas principalmente porque acaba distanciando o espectador do que, pelo que podemos perceber na história de Dick, deveria ser um trabalho que lida diretamente com a nossa realidade e suas aparências. Uma vez animados, os personagens ganham uma leitura muito mais fluida, que quebra o impacto real do texto. O que sobra se assemelha a uma grande brincadeira de um grupo de nerds hiper-sensíveis, com muito humor (eventualmente engraçado) e alguma inteligência, mas de pouca ambição para além de ser um filme cool. Cool ele é, gelado até. Linklater, pelo menos na avaliação do escriba aqui, passou em branco pelo Festival.

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Dois comentários rápidos.
Primeiro sobre Marie Antoinette e sua recepção. No dia da sessão, todos os amigos brasileiros com quem cruzei pareceram bem desanimados com o filme, e a sensação que tinha sido um autêntico fracasso, já que eram reportadas vaias na sessão de imprensa e que a coletiva tinha sido um tanto ríspida e deprê. No dia seguinte, vendo as cotações das duas principais revistas que fazem quadros com críticos presentes no Festival, fiquei surpreso ao ver que na Screen (revista inglesa, que faz um quadro com 9 críticos de diferentes países/continentes) o filme estava com uma média bastante razoável (embora inferior a 6 ou 7 filmes da competição, nem perto dos que tinham pior avaliação). Na Film Français (revista em francês, com um quadro só de críticos daqui), mais aceitação ainda: o filme foi o que recebeu o maior número de Palmas de Ouro (a cotação máxima que o crítico pode dar) entre todos os concorrentes apresentados até então. Fiquei confuso, então: afinal o filme foi um fracasso ou não? Espero vê-lo nos próximos dias para dar a minha impressão pessoal, e também para ver como ele vai de público na França (aparentemente estreou muito bem).

O segundo é bem mais rápido (e fútil, para ficar com a palavra que a maioria dos críticos do filme de Sofia Coppola tem usado): saindo da sessão do filme de Xavier Gianoli hoje, passei pelo box onde o júri assiste a filmes (nem sabia que algum deles acordava para ver filmes às 8 e meia!), e lá estava Wong Kar-wai. Até aí nada demais, mas o verdadeiro evento foi descobrir que até dentro do cinema, vendo filmes, ele fica de óculos escuros. Incrível.

 


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