Diário de uma Busca, de Flavia Castro (Brasil, 2010)
por Juliano Gomes

Diário de uma BuscaAbertura política

A forma do diário, assim como suas variantes como o filme-diário, tem como função, quase sempre, dar ordem a alguma forma de caos, de desordem, estabelecer alguma linha clara que permita uma mínima inteligibilidade. A empreitada diarística tem essa missão como seu a priori: dar algum sentido à passagem dos dias, à desordem indiferente do tempo, ao acaso, através da cronologia. No filme de Flávia Castro, esta estrutura de busca de sentido se volta para o desaparecimento do pai da diretora, em circunstâncias bastante misteriosas no começo dos anos 80 em Porto Alegre. Entretanto, esta empreitada serve também como pretexto para tecer uma longa crônica do desencanto da esquerda brasileira, através de seus militantes, do golpe à anistia.

A aposta de Flávia Castro é oscilar entre o íntimo e a história oficial para tentar revelar as possíveis interseções entre o geral e o particular.
Entretanto, há sempre um risco inerente a todo empreendimento autobiográfico: como fazer esta história ter interesse para quem assiste, para quem não viveu esses momentos e não conhece esses personagens? È preciso transcender o narcisismo, isto é, a exposição pela exposição, para tornar aquilo importante para quem vê. Para vencer este desafio, Flávia de Castro, escolhe a batida opção de narrar o trajeto da esquerda brasileira e dos exílios imposto aos militantes (seu pai, Celso, foi um deles), e a história de seu desencanto político, dos anos 60 aos 80. O caminho acaba por se tornar ineficaz na medida em que se trata não de uma, mas de duas histórias muito contadas no documentário brasileiro: a história política do país dos 60 aos 80 e a busca por um pai. Cada uma delas é quase um subgênero do nosso cinema documental das últimas três décadas. E a opção do paralelo constante acaba por enfraquecer os dois eixos do filme.

Diário de uma BuscaA "história política", que parece tentar legitimar o lado pessoal do filme, acaba por banalizá-lo, por torná-lo mais um, ao investir numa busca pela exemplaridade através do modelo pessoal-universal. Nos seus momentos de intimidade, o filme acaba sendo acanhado, comedido, não permitindo algum tipo de surpresa ou descontrole que o cinema em sua forma mais artesanal pode oferecer. Isso se torna flagrante no tom das narrações das cartas, e nas constrangidas cenas de interação com seus familiares. Ao lado de uma necessidade de sentimentalismo presente em muitas cenas (como o choro da própria diretora em cena), há uma frieza, uma dureza na articulação das imagens e na encenação das entrevistas que não torna o filme nem "mais objetivo" nem mais austero, e sim mais uniforme e monótono, sem possibilidade de abertura ou reconfiguração. Mesmo na surpreendente entrada em cena de uma entrevista antiga com a diretora, o interesse ali parece ser o da mera informação do que ela diz, confirmando o trajeto de desencanto do filme e da afirmação de uma identidade confusa em relação ao pertencimento, a partir da experiência do exílio.

Na porção do filme onde poderia haver algum tipo de surpresa ou descontrole, a partir das situações de interação com outro, parece surgir somente o esperado: emoções na hora certa, falta de informações de quem já esperávamos isto, e um certo esgarçamento da busca que acaba tornando o impacto do filme ainda mais rarefeito. Afinal, a estrutura deste documentário acaba por se situar num certo limbo, que nem aprofunda a discussão política e o deslocamento que a idéia militância de esquerda sofreu, nem investe na liberdade estética que filme autobiográfico, artesanal, lhe permitiria. Ao contrário de 33 de Kiko Goifman e mais ainda de Um Passaporte Húngaro de Sandra Kogut, filmes que guardam semelhanças com este, Diário de uma Busca acaba gerando um fechamento cada vez maior de suas questões. E, na medida em que o filme perde a capacidade de se surpreender, de abrir-se para o novo, de incorporar o acaso e reconfigurar suas questões (o que talvez seja a grande força desse tipo de cinema de busca), o trajeto dessa busca se torna cada vez menos interessante e imprevisível. E assim, esvazia-se estética e politicamente.

Setembro de 2010

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