Do Começo ao Fim, de Aluizio Abranches (Brasil, 2009)
por Fábio Andrade


Desejo estéril

Em um diálogo em Do Começo Ao Fim, a personagem de Julia Lemmertz explica a seu filho mais velho sobre os dois lados que existem em tudo na vida. O garoto rebate com uma pergunta: “Se a gente pode escolher olhar pro lado bom, por que olha pro outro?”. Do Começo Ao Fim pode ser visto como uma versão dourada de um incesto gay – algo que o filme, a rigor, também é. Mas com essa frase, Aluizio Abranches assume aberta e honestamente sua postura diante da natural espinhosidade de seu tema: o diretor escolherá, sempre, olhar para o lado bom.

Existe, porém, um elemento complicador nessa decisão, pois Do Começo Ao Fim se constrói em primeira pessoa, e desde o primeiro plano temos nosso olhar orientado pela narração em voice over do filho mais novo. A romantização daquela situação é, portanto, uma aderência do filme ao olhar de um personagem. A fotografia – da predominância da luz difusa a um pôr do sol fabricado por refletores – cria uma tênue capa onírica que parece envolver o filme. Se não temos um belo pôr do sol na vida, o cinema pode ir lá e fingir que ele existe. Como Do Começo Ao Fim é uma fábula em wishful thinking, é natural que não exista crise e que o incesto nunca se desenvolva como uma questão desestabilizante, pois isso reflete um desejo da personagem. Desejo de se entregar ao irmão em cinemascope, com toda a estabilidade flutuante forjada pela steadycam, a benção dos pais e das contingências.

As fragilidades de Do Começo Ao Fim não são, portanto, do terreno da verossimilhança ou do choque temático. Muito pelo contrário, a maneira como Aluizio Abranches esvazia seu filme de qualquer gravidade é provavelmente o que ele tem de mais interessante. Embora o diretor nunca tensione a esfera onde se dá a encenação (basta pensar em como David Lynch trabalha os limites entre o sonho e a realidade), a delimitação do ponto de vista é uma salvaguarda para os momentos em que o devaneio se transforma em desvario. O problema é que, ao retirar a gravidade, Abranches acaba por eliminar, com ela, a solidez de seu filme. Pois Do Começo Ao Fim não adere com rigor ao ponto de vista da personagem, e parece adotar essa estratégia apenas quando ela resolve mais facilmente os entruncamentos da dramaturgia. Amarrado à conveniência, o voice over aliena o personagem e o filme do mundo, e de si mesmo.

Afinal, se essa suposta aderência tem a crueldade de empurrar toda a tipificação do filme para um personagem (na Argentina, por exemplo, só toca tango), a cafonice só é aceitável por esse mesmo motivo. Mas, a partir do momento em que esse ponto de vista não é aderido com alguma consistência, sua volatilidade expõe a construção do filme como pura canastrice de encenação. Quando ouvimos a personagem de Fábio Assunção falar sobre a saída de Collor do governo, não temos isso como uma memória de infância do narrador (que não está incluído ou presencia a cena, e só pode aparecer por meio de uma trapaça estrutural), mas sim como maneira didática de situar o filme em uma determinada época. E o didatismo independe do realismo; mesmo no sonho, é sempre redutor. A um close enigmaticamente incômodo de Julia Lemmertz, logo se sucederá um contraplano dos filhos, agarradinhos no sofá, que destruirá qualquer possibilidade de enigma. À natural ambiguidade da relação dos dois irmãos, a tipificação do mais jovem como um recém-nascido falante e do mais velho como um pequeno adulto elimina a chance de qualquer vida. Não há vida; há personagens mal construídos.

Por conta desse tipo de armação, Do Começo Ao Fim não se sustenta nem como narrativa realista, nem como fuga onírica. O que temos é uma simplificação extrema de toda a encenação – dos atores ao posicionamento de câmera – que simplesmente não é capaz de dar conta de universo algum. O que sobra são pequenos teasers de um amor predestinado, onde o sexo só pode acontecer nos limites conservados por um fade out, e a relação entre os corpos é sempre fria, flácida e distante. A frieza, a flacidez e a distância, porém, nunca são pensadas conscientemente pelo filme; existem apenas como fragilidades, como buracos em um desejo que não se percebe esburacado, afísico e inventado.

Dezembro de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta