ensaios Objetos
sujeitos? por Cléber Eduardo
A
fuga do poder exercido pelo controle da câmera e da posterior organização das
imagens na montagem vem sendo progressivamente instaurada no documentário desde
a utilização do som direto, nos anos 60, e do também progressivo desaparecimento
das narrações “sabe-tudo” como linha de conduta hegemônica - na chamada voz de
Deus, a do autor (terceirizada para um narrador). Embora, em alguns trabalhos
específicos, como Santiago (João Moreira Salles, 2007) e Extremo Sul
(Mônica Schmiedt e Sylvestre Campe, 2003), os narradores têm informações, interpretações
e conclusões aos quais os seus documentados não têm acesso, não se emprega nesses
casos a narração com o mesmo estatuto da “voz de Deus”, mesmo não havendo também
uma ruptura com essa matriz, mas uma renovação ou deslocamento de efeito.
A
questão em jogo, nesses casos, ou mesmo nas cartelas ocasionalmente em primeira
pessoa de Seo Chico (José Rafael Mamigonian, 2005 - foto acima e ao lado),
é de subjetivação, por assim dizer, sem a narração objetiva de outros momentos
históricos. Quem fala é o documentarista e, quando algum dado é importante para
se entender algo do mundo dos personagens, essa informação é escrita, não mais
falada, pelo menos desde a onisciência estatística de Notícias de uma Guerra
Particular (João Moreira Salles, 1999), que utiliza a voz do saber objetivo
para entremear as vozes das experiências e das testemunhas. No
entanto, se há uma subjetivação mais evidente nas últimas décadas, e sobretudo
nos anos 2000, é a do personagem. E aí, em sintonia com parte do ensaio
de Bill Nichols (A Voz do Documentário, 1983) segundo o qual a perda de
autoridade de uma voz do saber resultou em transferência dessa voz para os entrevistados,
as palavras, em forma de depoimento, testemunho ou entrevista interativa (com
voz do entrevistador), têm sido um norte geral, independentemente de carregarem
sentidos de uma verdade ou da instância narrativa legitimar seu conteúdo. Mesmo
em trabalhos mais formalistas, ou performativos (segundo Nichols), mesmo em propostas
sem compromissos com informações e explicações sobre determinado universo, é a
palavra, mais que a imagem, a mediação entre nós e os personagens. Predomina nas
diferentes estratégias de uso da palavra e das situações o efeito de “testemunho”,
de relato da presença e da experiência, de uma visão argumentada sobre algo, mesclando
o “eu estive lá” e o “eu vivi isso” com o “eu acho isso”. Seria necessário analisar
um número amplo de utilizações das vozes, das mais diretas (como em Edifício
Master, de Coutinho, 2002), às menos diretas (como em Margem, de Maya
Da-Rin, 2007 - com muitas vozes fora da imagem), incluindo as “vozes do interior”
(como em Diário de Sintra, de Paula Gaitán, 2007), de modo a pensarmos
essa mediação pela palavra. A busca do personagem
único
Se
antes o personagem era um caso ou uma peça dentro de quadro mais amplo, como continua
a ser em Ônibus 174 (José Padilha, 2002), O Prisioneiro da Grade
de Ferro (Paulo Sacramento, 2002), Meninas (Sandra Werneck, 2006),
Sou Feia Mas Tô na Moda (Denise Garcia, 2005), Justiça (Maria Augusta
Ramos, 2004), Viva São João (Andrucha Waddington, 2002) e 2000 Nordestes
(David França Mendes e Vicente Amorim, 2002), hoje ele é relativizado em
sua porção “todo contido na parte”. Procura-se nele a presença do que há nele
para além dele, mas sem se perder de vista o que há nele somente dele, sua assinatura
de vida, seu DNA existencial, sem o qual se mataria o personagem e se reduziria
o personagem a uma ilustração – ou, nas palavras de César Guimarães no ensaio
O Devir Todo Mundo do Documentário, se deslocaria da diferença irredutível
para a inteligibilidade apagadora de diferenças. Em sintonia com o espírito de
seu tempo, da crítica mais jovem aos movimentos dramatúrgicos da ficção, persegue-se
a autonomia das partes, dos sujeitos, dos personagens, sem necessariamente a mesma
procura em direção a se vislumbrar ou se estabelecer relações com um contexto
mais amplo dessas existências particulares. Essas, quando lá estão, são inevitáveis,
não procuradas, quase nunca estabelecidas - o lixão em Estamira (Marcos
Prado, 2005 - acima), por exemplo. Para Jean-Louis
Comolli, no artigo Os Homens Ordinários, A Ficção Documentária *, o documentário,
longe de ser o território da informação e da categorização, é espaço das metamorfoses,
da ambigüidades, daquilo que escapa, em suma, do controle delimitador da câmera.
É mais uma presença filmada que uma presença real e do real, uma presença de relações
entre quem filma e é filmado. “Como passar do indivíduo à massa? Questão política.
Como passar da coletividade ao sujeito? Questão cinematográfica”, afirma Comolli,
para quem, porém, o sujeito destacado da coletividade foi transformado, em sua
exceção espetacular, na norma da massificação, processo ao qual denomina “gozo
privado socializado”. Pensemos a respeito. Nos documentários, a individuação não solicita, como na publicidade, um espectador/consumidor
que se identifique com o personagem, com o poder de consumo e inserção desse personagem,
mas sim um outro tipo de consumo, interessado na diferença entre espectador e
esses personagens, uma diferença afirmada pela condição de margem, invisibilidade,
imobilismo ou de visibilidade a custo da condição de margem, como em A Pessoa
É para o Que Nasce (Roberto Berliner, 2003), Moacir - Arte Bruta
(Walter Carvalho, 2005) e A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004). Em
quaisquer dos casos, longe de serem os “sujeitos massificados e massificantes”,
esses personagens, embora possam conter todos em um, embora possam carregar vestígios
do universal nas evidências do particular, não são nossos próximos, antes da experiência
de contato com eles mediada pelo documentário, mas nossos “outros”. Para nos aproximarmos,
será necessário, antes de mais nada, curiosidade, ignorância e estranhamento,
sem os quais suas presenças perdem em “revelação” (deles e de seus mundos). O
consumo dessas imagens é o consumo de um pensamento, de uma retórica e de uma
experiência da qual, tudo levar a crer, o espectador guarda distância em sua experiência.
Quebra-se essa distância no documentário,
mas por meio de uma mediação segura, que nos aproxima das imagens e não das pessoas.
Não queremos ter a vida deles, sequer fazer o que estão a fazer, mas apenas saber
de suas existências, como se expressam, o que pensam, onde e como vivem, sem precisarmos
lidar com eles em nossas experiências. Mas estaremos, documentaristas e espectadores,
atrás e diante de particularidades no mundo, nesses casos, ou de mundos com particularidades?
Comolli
pergunta: os personagens mais singulares não são puro conflito com o mundo, com
os outros e consigo mesmos? Filmar é colocar as presenças em relações, mesmo as
relações ausentes, porque há relação ao se filmar a não relação, mesmo se for
a relação entre quem filma e é filmado. Não existe o estar sozinho em um documentário
e, quando vemos o ermitão de A Alma do Osso (acima), sozinho consigo
e com a natureza, ou mesmo quando assistimos à “solidão pensativa” de Nelson Freire
em Nelson Freire (João Moreira Salles, 2003) a deglutir uma “briga” com
um piano, estamos diante da performance da solidão, mas não da solidão, porque
havia uma câmera ali para filmar essa ausência e para produzir esse efeito do
“estar só”. Uma presença para produzir ausência. Comolli
fala da relação erótica entre câmera e personagem, relação essa na qual o personagem se torna sujeito ao
passar por um ultrapassamento de si, por uma desconexão de seu papel social, como
na experiência erótica tal qual pensada por Bataille (morte da consciência).
Nesse ultrapassamento, o personagem não se deixa aprisionar pelo controle, menos
ou mais evidente, exercido em todo o documentário na relação entre as imagens,
palavras e as possibilidades de significados. Torna-se, por zonas de escapes,
enigmas. Em alguma medida, selvagens, não domesticados.
Os anônimos
extraordinários
Neste
sentido, parece-me particularmente interessante a recorrência de filmes
centrados sobre personagens que podemos chamar de "anônimos extraordinários".
Trata-se de seres comuns/ordinários, singularizados tanto por suas retóricas e
performances cênicas, assim como por conta de algum tipo de disfunção em suas
presenças diante da câmera: deficiência física-orgânica-mental, retórica muito
peculiar, capacidade de se fazer enigma diante da lente, potência performática
singular. Pode ser uma particularidade de condição social – casos dos presidiários
de O Prisioneiro da Grade de Ferro, dos suspeitos de infração de Justiça,
do protagonista de uma atividade em extinção de Seo Chico – Um Retrato,
de jovens em busca de inserção profissional em PQD (Guilherme Coelho, 2007)
–, mas também de condições físicas e mentais, como no caso das cantoras cegas
em A Pessoa É para o Que Nasce (acima), da verborragia profética
e paranóica em Estamira, da pintura naif e a fala desconexa em Moacir
– Arte Bruta. Por que filmar essas pessoas? Como filmá-las? Empregar um olhar
sobre elas, assumidamente, ou procurar o olhar delas, ao menos como efeito. A
relação entre o eu que filma e o outro que é filmado não pode ser considerada
uma simples relação direta entre um sujeito e seus objetos humanos. Há da parte
do objeto uma parcela de sua presença como sujeito em determinadas circunstâncias
– em Edifício Master, por exemplo – e da parte do sujeito à disposição
de se tornar também objeto em alguns casos – em A Pessoa É para o Que Nasce.
De qualquer forma, quando uma câmera é dirigida para alguém, há um exercício de
poder, queira o realizador ou não, em relação a quem está em quadro. Não há como
se fugir disso, como se esse poder fosse em si nefasto ou deturpador da imagem
de quem está enquadrado, até porque essa imagem do outro, a rigor, será construída
nessa relação. Jean-Claude Bernardet dedicou nos anos 80
um livro inteiro, Cineastas e Imagens do Povo, aos discursos de documentários
brasileiros pós-1964. Segundo o ensaísta, o universo de filmes analisados revela
tanto a crise do modelo sociológico (documentarista como voz do saber e o poder
do conhecimento) quanto a questão do poder da instância autoral sobre seus personagens
por meio de operações na linguagem. Isso
nos coloca, quase sempre, no velho lamaçal: onde está a autoria quando o autor
quer deixar o outro ocupar o documentário sem parecer estar sendo produzido com
segundos ou terceiros interesses, com hipóteses, teses e pressupostos já sedimentados
antes da experiência desse realizador com seu material? Como um documentarista
estabelece seu ponto de vista quando deseja impedir que o ponto de vista ofusque
a própria construção da imagem desse outro? Onde estaria a autoria do outro quando,
em O Prisioneiro da Grade de Ferro (acima), rompe-se a hierarquia entre
quem filma e é filmado, entre equipe de documentário e personagens de documentário,
sem sabermos quem filma em qual momento, mas sem com isso romper-se com a figura
do autor do documentário.
Pois
não percamos do horizonte a posição de Mallarmé sobre o autor e as autorias, retomada
depois por outros teóricos, como Barthes e Foucault, para eliminarmos o autor
como questão crítica e centrarmos a questão na obra, nas escolhas, estratégias
e evidências, que, em si mesmas, delineiam o campo da autoria e do ponto de vista,
independentemente da coerência ou incoerência dessa instância autoral. Ela está
ausente em Estamira, Andarilho (Cao Guimarães, 2007) e Aboio
(Marília Rocha, 2005), que não têm voz e imagem de seus diretores, ou está presente
na linguagem, com sua manipulação de luz, textura, cor, procurando uma imagem
fabular-mítica, não uma imagem de indicialidade de real? E essa imagem tão assumidamente
construída é uma forma de evidenciar a intervenção, ou, como também em momentos
de Moacir – Arte Bruta e A Pessoa É para o Que Nasce, procura estabelecer
um padrão estético para o olhar do outro e anular o do autor? Mas procurar uma
estética para o olhar do outro não é a revelação de como se enxerga esse outro
ou ao menos de como se quer construir a imagem dele?
A ética
e a moral Pensemos uma diferença entre ética e moral
no documentário. Moral é o conjunto das proibições gerais já acordadas antes do
documentarista ligar a câmera. Ética é um espaço construído na relação do documentarista
com seu material e com as pessoas envolvidas nele. Uma moral já está dada antes
de nossas decisões e ações. A ética nos ajuda a problematizar nossas decisões
e só pode ser construída no próprio processo de decidir e agir. Ao pensarmos a
imagem do homem anônimo no documentário, talvez, tenhamos de arquivar todas as
proibições morais. Pensemos somente em uma ética na estética documental, que não
é lei para o documentário, mas produto da própria obra já finalizada, que não
se determina como regra, mas se intui ou se demonstra pelas próprias características
na tela. Uma moral talvez pudesse proibir documentaristas de filmar pessoas com
deficiências mentais ou físicas. Uma ética só construída a partir das escolhas
do documentarista ao filmar pessoas nessas condições. Não antes. Ao
pensarmos uma ética e uma instância autoral quando estamos diante de imagens de
homens e mulheres comuns, no fundo, estamos atrás de legitimação e questionamento
sobre maneiras de filmar esses homens e mulheres, atrás de um suposto certo e
errado em cada caso, atrás dos possíveis e supostos limites ao se exercer o poder
da câmera sobre aquelas figuras humanas destituídas de poder para se afirmarem
como imagens públicas. No entanto, como lidar com esse trabalho inevitavelmente
dotado de certa carga de patrulha e fiscalização, mais forte no documentário,
se os próprios documentaristas, segundo seus procedimentos, procuram um espaço
de desregulação e liberdade, com menos regras e menos limites para poder lidar
com seus materiais? Talvez faça parte dessa maior liberdade a fuga do homem e
da mulher simples como indicialidade sintomática de povo brasileiro ou de classe
social. Procura-se pessoas e não representantes do povo. Procura-se o único, o
singular, o inigualável, o extraordinário do ordinário, não o homem médio e medíocre,
o homem exemplar, capaz de carregar a estrutura em si mesmo. Procura-se as zonas
de escape e de fuga, as exceções, o lado especial de uma gente sem lugar de destaque.
* Tanto o texto de Jean-Louis Comolli quanto o de César
Guimarães fazem parte do volume O Comum e a Experiência da Linguagem (UFMG, 2007). Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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