Família
Braz - Dois Tempos,
de Dorrit Harrazim e Arthur Fontes (Brasil, 2011)
por Eduardo Valente
Um
filme nas frestas de outro
Já a partir do seu título, Dois Tempos
tem um programa absolutamente cristalino: encontrar, dez anos
depois, os seis membros de uma família de classe média baixa da
periferia paulistana, retratada pelos dois diretores em um documentário
realizado no final da década de 90, e perceber de que maneira
suas vidas estão ou não mudadas depois deste período. Cristalino,
aliás, como já eram também o programa e o título do primeiro filme,
Família Braz, que tentava construir um retrato dessa família,
tomando-a metonimicamente como uma representação, justamente,
dessa classe social/ambiente sócio-geográfico.
Projeto original da importante jornalista Dorrit
Harrazim, não é difícil perceber nos dois filmes a pegada que
mistura uma tendência à apuração para uma reportagem com o pendor
da observação sócio-antropológica. De fato, Dois Tempos,
como seu antecessor, tem forte sabor de filme etnográfico, mesmo
que a “tribo” aqui retratada nos soe mais próxima do que as incursões
exóticas mais associadas ao gênero. Sendo que aqui, aos costumes
e rituais típicos de um povo distante, substitui-se pela relação
com os espaços físicos da casa, a posse do carro, e a relação
com o espaço do trabalho – todos estes surgindo como exemplos
de desejo ou concretização de uma ascensão social que é, desde
o começo, claramente o maior interesse no relacionamento dos realizadores
com seus objetos. Se tomarmos estes pressupostos como medição
principal, é difícil dizer que Dois Tempos não cumpra à
risca seus objetivos, arrancando de seus personagens exatamente
aquilo que busca – seja na visita aos ambientes, seja nas várias
entrevistas.
Só que é esse mesmo “sucesso” que nos faz sentir
que talvez bastasse a sobreposição das imagens da família na frente
da casa, com a diferença de dez anos e quatro carros a mais, para
que o mesmo conteúdo desejado fosse passado com enorme economia.
Claro que existe mais profundidade na simples presença na tela
dos personagens como indivíduos, para além de seus papeis, mas
não se pode dizer que o filme esteja realmente muito interessado
nisso para além das categorias que a narração em off atribui
a cada um deles dentro da organização da família. Não deixa de
ser sintomático que a única cena em que o filme se deixa respirar
minimamente venha depois da sua “conclusão”, na dança que ilustra
os créditos finais, estando ressignificada pela informação da
morte de um dos membros da família depois do final das filmagens.
A simples duração daquela cena, onde não se representa nem informa
nada para além da dinâmica entre os corpos de alguns familiares
que celebram um momento, é o que falta a todo o resto do filme
– onde tudo parece sempre já muito dado, entendido, resolvido.
Nas
frestas das entrevistas, porém, é que se deixa entrever talvez
a mais curiosa e menos controlada (ou tematizada) das relações
que o filme produz: aquela da equipe de filmagem com os personagens.
Existe, ao longo de toda duração de Dois Tempos, uma estranha
sensação de cordialidade distante, talvez muito mais significativa
e sintomática das relações de classe no Brasil do que qualquer
coisa que o filme efetivamente deseje narrar. Da parte dos membros
da família, seja na forma de falar ou se portar, percebe-se sempre
um desejo de se mostrar da forma mais positiva possível ("você
está me dedando?", pergunta jocosamente - mas não
muito - um deles quando alguém conta algo menos abonador),
dentro do imaginário de “sucesso” que construíram para si, num
certo congelamento orgulhoso frente ao “pessoal do cinema” que
vai lá tirar um retrato da família. Do outro lado, existe da parte
da manufatura do filme (filmagem e montagem) um tom algo condescendente,
uma simpatia bastante de cima para baixo, que parece sempre querer
dar a chance de mostrar toda a dignidade da vida daquelas pessoas.
Muito mais que no seu retrato sociológico da “evolução
em dez anos de uma típica família da classe média”, é nessa calada
convivência entre duas classes, aparentemente harmoniosa e de
comunhão, mas no fundo incrivelmente distante, desconfiada e inconciliável,
que Dois Tempos se mostra mais representativo e agudo.
Nesses momentos, percebe-se ali a presença encarnada ainda que
numa forma muito mais sutil (e por isso mesmo mais marcante, pois
naturalizada) da mesma velha questão que levou aos dilemas metalinguísticos
de um Santiago. E que aqui estes dilemas nunca surjam como
uma questão para o filme acaba nos dizendo bastante sobre um modo
de estar no mundo absolutamente brasileiro.
Abril de 2011
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