sessão cinética
Diabo a Quatro (Duck Soup),
de Leo McCarey (EUA, 1933)
por Juliano Gomes

Sicilia!As palavras e as coisas

Na terceira vez em que o personagem de Groucho Marx tenta sair de carona com a moto, e pela terceira vez se desacopla dela (na verdade, ele está na moto e é o carona quem se desacopla), ele se apóia na moto, põe a mão sob o queixo e, resignado, diz que "essa é a única maneira de viajar". Neste breve momento de relativa calma neste selvagem espetáculo de variedades sobre o tema da estetização do poder que é Diabo a Quatro, podemos perceber que há algo de novo que ali aparece em relação à comédia física, em relação ao poder, em relação à estética, ao mundo enfim. Algo se esgotou: a possibilidade do movimento ordenado, lógico, multiplicado pela ordem, se esvaiu. A maneira realmente mais rápida de viajar é imóvel.

Anuncia-se, aqui, uma espécie de ponto de virada da comédia física para comédia mental, no alvorecer do cinema falado. Dois anos antes de Leni Riefenstahl criar o que talvez seja o ponto máximo da beleza pela ordem, do espetáculo pela anulação do sujeito em nome de uma disposição regular que o transcende e o subjulga, o seu perfeito (e obviamente, imperfeito) oposto já havia sido feito, dentro de um grande estúdio de Hollywood. Todo o trajeto da narrativa do filme de McCarey é de desarmar e virar pelo avesso todos os rituais dos poderes constituídos. Entretanto, não é pelas margens que os Irmãos Marx agem, é dentro do sistema - inseridos no comércio, na indústria, explodindo-o a partir dos seus próprios termos. Não há novos elementos introduzidos no jogo, há somente reprocessamento (não por acaso há a presença de materiais de arquivo na absolutamente genial parte final do filme), dobras, devolvendo para confundir, espelhando infinitamente até se perder o referente, até tornar-se ritmo. É possível resumir toda idéia de cinema moderno a partir de Diabo a Quatro: personagens que não agem diante de uma situação dada; múltiplos sentidos de uma cena, de uma ação; quebra da moral vigente; dramaturgia por blocos quase autônomos, e assim por diante. A política aqui é tema e procedimento, na medida em que se estabelece um horizonte de porosidade absoluta entre os personagens, as situações e as palavras.

Sicilia!Diante de um mundo entre guerras e que se prepara para seu maior trauma (que advém justamente do apogeu de uma forma de estetizar o poder, via Hitler) se coloca aqui um algoz à altura. Ou mesmo sem altura, sem forma definida. Porque, diante do espetáculo da estrutura perfeita, da construção minuciosamente ordenada, o que se pode oferecer é somente desordem, abrir possibilidades e direções diante da ameaça real do pensamento único que encontra terreno fértil nas encenações do poder: nas cerimônias oficiais, nos julgamentos e claro, na guerra. É contra qualquer oficialidade que esta obra se coloca: contra o cinema oficial, o público oficial, o cinema de contestação oficial ainda por vir, enfim: uma obra fora do tempo, fora da história; um movimento para os lados, sem fim, quebrando o jogo oficial (que pressupõe um autoridade, uma posição de superioridade, fixa). A solução geralmente vem antes do problema.

A única maneira de viajar é parado, pois, para demolir um palácio, uma palavra basta. Ao longo do filme, percebemos que é somente preciso abri-la, para todos as direções menos a "certa", num jogo infinito de reversões e repetições - antecipando também Beckett, pelas séries de palavras que vão se tornando movimento (tempo) puro. Não somente sons, mas a absoluta falta de centro, sem identidade (vide a duplicação de Groucho). Um golpe mortal em qualquer possibilidade de absoluto. Tudo é reversível. É só pegar a tesoura e cortar os chapéus, as palavras, os fundos dos bolsos e das palavras. Algo há de aparecer. Devolver as perguntas dos tribunais, dos ditadores, colocá-los diante do espelho, porque uma imagem vai ser sempre outro, e, de volta ao referente, ela o transforma e ganha outro sentido pela diferente colocação no tempo. É uma questão de intervalos.

Sicilia!Assim como em Beckett e Straub (para citar dois monumentos da idéia de modernidade) a palavra vai se tornar canção - daí esse filme ser um grande musical. Não para esvaziar o sentido ou denunciar um possível vazio para descobrir o que há por detrás. É exatamente o oposto disso. Em Diabo a Quatro, uma palavra é lançada ao ar em toda sua plenitude, flexibilizada e exercida através de suas possibilidades e mutações, colocada em movimento, virada pelo avesso, remendada, dita e contradita, e o mesmo acontece a toda e qualquer ação aqui. O que se coloca, então, é um complexo sistema de trocas radical, nos diálogos e nas ações. São solos que se combinam aleatoriamente, que se abrem pra dentro e para fora, que se relacionam com o outro mas que seguem uma trajetória própria e cambiante. Há uma tensão permanente entre autonomia e combinação das partes, sem nenhum momento optar totalmente por nenhuma delas (como faz muito do que se chama de cinema de moderno), variando infinitamente. E então, há música.

Abril de 2011

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