Dzi Croquettes,
de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

Explosão arqueológica

Logo que começa a traçar a história da trupe teatral que dá título ao filme, Dzi Croquettes parece se munir de uma arma bastante hiperutilizada pelo documentário “informativo” (o que ele nunca deixa de ser, como já transparece a abertura com um rápido resumo dos pontos principais da relação da ditadura militar brasileira com a produção artística do momento): o apelo às “autoridades” que tanto legitimem aquilo que se diz, como principalmente que emprestem rostos conhecidos para a divulgação/empatia do filme junto ao público. Assim, nem com cinco minutos de duração, já tivemos a indefectível presença de Nelson Motta na tela (sempre presente em qualquer documentário sobre música brasileira – e curiosamente sempre sentado à frente do trabalho de Oiticica que ostenta na parede da sala de sua casa) e ainda um desfile que passa por Geraldo Carneiro, Marilia Pêra, Pedro Cardoso, Betty Faria – ou seja, vários dos “suspeitos usuais”.

Ante estes rostos da autoridade e as mesmas velhas imagens de arquivo da repressão política nas ruas do Brasil, talvez seja inevitável para muitos nestes cinco minutos iniciais uma impressão inicial que passe pelo enfado pelo já visto, ou até (e principalmente) o desinteresse firme por um uso de ferramentas tão banalizadas de construção documental.
Pois quem abandonar o filme aí (seja no sentido prático ou perceptivo) perderá a chance de descobrir que estas mesmas ferramentas (entrevistas com nomes célebres e uso de material de arquivo) serão viradas de cabeça para baixo, ganhando um sentido completamente inesperado, além de absolutamente engajante. Sim, porque o filme logo deixa claro que todos aqueles nomes já mencionados, e uma verdadeira legião de outros que surgirão em cena (indo de Jorge Fernando, Miguel Falabella e Cláudia Raia a Liza Minelli e Gilberto Gil), não aparecem aqui nunca como autoridades distanciadas e/ou legitimadoras, mas sim como aquilo que verdadeiramente são em relação ao objeto do documentário: quando não parte integrante dela, direta e profundamente envolvidos com a história do grupo (caso de Faria, Minelli, Fernando); pessoas cujo trabalho artístico foi radicalmente alterado, influenciado ou simplesmente iniciado mesmo pelo contato com os Dzi Croquettes. Logo perceberemos que, no fundo, todos eles estão ali antes de tudo como tietes – para usarmos uma expressão cara ao filme e ao grupo.

Esta mudança de registro dos rostos conhecidos e dos seus depoimentos, passando rapidamente de autoridades para tietes, dá a chave da verdadeira força de Dzi Croquettes, o filme: seu afeto transbordante por aquilo que tenta documentar. Em parte este afeto pode ser compreendido pela relação pessoal direta da diretora Tatiana Issa com os personagens, explicitada pelo filme de maneira bastante tateante, sem saber direito como adicionar este dado à sua narrativa. Mas, na verdade, logo fica claro que esta explosão de afeto vem da fonte, do próprio grupo e do seu entorno, da maneira como misturavam vida pessoal (onde o termo justo talvez fosse “vida coletiva”) com prática artística e presença no mundo. Construir esta atmosfera de um afeto quase desmedido não é a menor das qualidades do filme, e é de fato o que permite, por exemplo, que depoimentos de personagens que choram ou engasgam em cena pareçam tão naturais quanto o momento em que Betty Faria levanta do sofá para fazer movimentos de dança. Parece que para falar de Dzi Croquettes os personagens do filme precisam se colocar num estado à flor da pele, como o filme nos deixa sentir que era a presença deles – no palco, e no mundo.

Este estado à flor da pele trabalha tão a favor do filme que permite que mesmo seus equívocos – ou melhor seria dizer sua confusão – pareçam comoventes. Porque Dzi Croquettes é, sem dúvida, um furacão bagunçado de informação, de formatos, de idéias mais ou menos desenvolvidas. Isso é algo que já começa pela citada maneira bastante desengonçada como incorpora uma primeira pessoa radical no registro, mas que se espalha por várias das escolhas formais do filme, como as vinhetas musicais que separam o filme em partes em determinados momentos. Parece em cada uma destas situações que Dzi Croquettes está o tempo todo no fio da navalha: ao mesmo tempo em que quer se soltar de todas as amarras para poder gritar aos quatro ventos sua admiração e amor pelo grupo e sua história, o filme eventualmente se lembra de obrigações externas a esta emoção primária, como a necessidade de informar, de narrar com uma mínima ordem a história destas pessoas e suas circunstâncias. Com isso o filme avança num ritmo deliciosamente esquizofrênico: paradas, mudanças de direção, explosões de informação. Algo entre o fluxo de consciência (particularmente bem encarnado pelos momentos em que diferentes entrevistados vão completando as frases dos outros, ou repetindo coisas já ditas) e o medo de perder a capacidade de comunicar sua história para um outro.

Sim, porque fica claro no filme que esta dimensão de eternizar a narrativa destas vidas é tão vital para os realizadores quanto qualquer outra coisa. Há o sentimento aqui de uma urgência, de contar esta história antes que ela se perca – como aparentemente já se perdeu em grande parte para as gerações mais novas. Neste sentido, o uso das imagens de arquivo dentro do filme é exemplar, até pelo fato destas imagens estarem em suportes deteriorados que têm uma leitura quase arqueológica: parece que aquelas imagens saem de baús escondidos, de tempos bem mais distantes do que os 40 anos que nos separam delas, e que corriam risco real de sumirem a qualquer momento, apagando a passagem daqueles espetáculos e daquelas pessoas pela Terra. Este risco de extinção parece um sentimento particularmente autêntico pelo fato das circunstâncias históricas e pessoais terem sido tão devastadoras com o grupo, matando em menos de quinze anos nada menos do que oito dos treze membros originais - a grande maioria deles em idade absolutamente precoce. E, por mais cheio de energia e amor pela vida que o filme seja, também não se pode negar que ele caminha inexoravelmente para a Morte – algo que podemos pressentir desde o começo tanto pelo recorrente uso de imagens de arquivo para falar de uma série de personagens como pela maneira embargada como se fala deles no filme. O fato é que, se Dzi Croquettes faz questão de firmar, literalmente desde o começo, a trajetória deste grupo como representativa do seu momento histórico, talvez o confronto com a AIDS seja algo até mais significativo neste sentido do que a ditadura militar no Brasil.

E aí preciso dizer que, se esta verdadeira briga contra o esquecimento (que no fundo nada mais é do que uma briga contra a Morte) é o que parece mover antes de tudo Dzi Croquettes, a recuperação destas imagens de arquivo, para além de qualquer leitura simbólica, consegue em grande parte cumprir com este feito. Porque embora não seja nem um pouco necessário que um documentário possa de fato “apresentar documentos” que comprovem aquilo de que trata, a verdade é que se não víssemos os Dzi Croquettes em cena naqueles vídeos bastante amadores que sobraram como registro deles no teatro, o filme não teria nem metade de sua energia. Porque são elas que permitem que a tietagem e a explosão de carinho pelos artistas se encarne na tela com uma pregnância outra, onde sentimos conseguir entender de que força e de que importância artística estão falando aquelas pessoas todas. E se é fato que mostrar essas imagens por si só não faria necessariamente de Dzi Croquettes um bom filme, o fato de mostrá-las dá a ele uma outra dimensão, que não é só a da “relevância” (palavra tão perigosa no trato com o documentário) mas também a da grandeza artística.

Janeiro de 2010

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