Nos cinemas, ausência de filmes; na TV, de uma imagem
por Cléber Eduardo e Eduardo Valente

Em momento pouco estimulante do ano de lançamentos cinematográficos (onde a maioria dos poucos lançamentos importantes são filmes exibidos nos festivais do ano passado), algumas imagens da TV nos mostraram como, em um regime de visibililidade exacerbada, a ausência de uma imagem desvendadora alimentou um mito em torno dessa ausência. Através da onipresença do caso Isabella Nardoni, este foi um abril do extracampo: de uma overdose de imagens repetidas, limitadas em suas revelações, que não explica a imagem ausente. Enquanto o caso continua evidente em sua falta da evidência dos momentos centrais, como sempre aconteceu, mas como ausência nunca acontecida de uma maneira tão dramática, tão enigmática e tão midiática, limitada e potencializada apenas pelas imagens possíveis de serem vistas, Cinética continua em seu processo de pensar o documentário (brasileiro, principalmente, mas não só), não pelo que falta nele, mas por suas presenças e evidências visíveis a todos os interessados.

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Não há enigma sem uma falta. No quebra-cabeça do caso Isabella, que transformou a televisão em parceira dramatúrgica da polícia, na expressão e divulgação do pensamento policial, há essa falta estruturante. Como preencher, com imagens, imagens que inexistem? Como elaborar por palavras a ausência de evidências do ocorrido no interior do carro e do apartamento de Alexandre Nardoni e Ana Carolina Jatobá? As testemunhas são auditivas. Há imagens somente de uma câmera de vigilância em um supermercado, importante por nos mostrar a roupa dos suspeitos, e outra da garagem do prédio em frente ao deles, coadjuvante no processo de precisão do horário de chegada no edifício. Portanto, fora os sons e essas imagens, há indícios. Rastros. Vestígios. Não evidências do que realmente ocorreu, inclusive das circunstâncias motivadoras, mas vestígios do ocorrido. Por isso mesmo, toda a overdose midiática em torno do mistério, se deu nessa ausência. E não há dúvida de que, se um filme com imagens de câmera de celular, captadas de algum prédio em frente ou ao lado, fosse lançado nos cinemas, ainda que a preços salgados, a população faria fila na bilheteria para ver, afinal, como e o que aconteceu nesse caso sem as imagens do ocorrido. O trabalho de perícia, portanto, equivale a de um pesquisador, que, sem cópia de certo filme, precisa reconstitui-lo com as informações disponíveis, com todos os riscos implicados nessa operação.

Nada mais distante do trabalho de críticos que essa operação policial e midiática. Porque para nós, os críticos, só importam as evidências, ou principalmente elas, e, sem poder tê-las diante dos olhos e sem a chance de as checarmos em revisões, teremos somente especulações, imaginações, suposições, mas não o trabalho crítico, que, a rigor, começa com o testemunho de quem irá analisar. Sem a imagem que tudo desvenda, o caso Isabella, para a mídia, tornou-se uma operação de rastreamento. Qualquer imagem disponível do casal naquela noite do crime ou nos dias seguintes passou a ser usada como índice de suas incriminações: seja a cena do pai conversando calmamente com um policial momentos após a queda da menina; seja a imagem do casal dentro do carro, com os olhos parados em algum lugar a frente, imunes e alheios a tudo; seja o beijo dele nela na esteira do supermercado – imagem essa que, em um primeiro momento, poderia ilustrar uma cena de harmonia conjugal, mas, depois, passou a ter outro sentido com o cerco de suspeitas em torno dos dois (o de uma parceria em qualquer circunstância, de um homem capaz de tudo por sua amada). Essas imagens suspeitas, mais as fotos de Isabella, várias e onipresentes, tentaram preencher o vazio da imagem x.

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