Reflexões do horror
por Fábio Andrade

A sexta-feira, 22 de julho, entrou para a história do cinema no Brasil por um motivo lamentável: a censura oficial de A Serbian Film, de Srdjan Spasojevic. O que começou como uma interdição da Caixa Cultural - patrocinadora e sede do RioFan, festival que faria as exibições do filme no Rio e que foi obrigado a retirar o filme de sua programação por exigência do centro cultural - em pouco tempo se desdobrou em um mandato de apreensão da cópia 35mm não-legendada que estava no Rio, seguida da proibição oficial de sua exibição pela justiça, tornando-se, assim, o primeiro filme censurado oficialmente no Brasil desde 1986 - quando Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard teve sua exibição proibida. Os fatos, a partir daí, já foram noticiados por outros meios, e seu conhecimento pode ser aprofundado com as leituras da carta de Rafaelle Petrini, distribuidor do filme no Brasil, e com a abrangente matéria que saiu na capa do Segundo Caderno do jornal O Globo desta quarta-feira.

Indo um pouco além, o caso A Serbian Film levanta diversas outras questões, que vão da responsabilidade da imprensa (é comum a versão de que a censura teria sido instigada por uma matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, repercutindo a recepção do filme em outros países) à fragilidade do sistema judiciário brasileiro, que aprovou uma ação usando uma interpretação no mínimo contorcionista de um artigo da lei brasileira. Mas, sobretudo, o caso levanta questionamentos sobre o próprio lugar que o cinema ocupa no imaginário brasileiro. Deveria uma obra de arte - boa ou ruim, pouco importa - ser submetida a julgamento absoluto e definitivo de juízes sem qualquer autoridade reconhecida pela comunidade artística, atropelando com essa arbitrariedade uma comunidade que tem valores e valorações próprias? A comunidade artística já não possui mecanismos internos suficientes para seu próprio controle, que vão desde o mercado ao trabalho da própria crítica? Pode um filme de ficção ser tomado como um atestado de verdade, como se a construção ficcional de uma cena moralmente questionável (ou questionadora) automaticamente atestasse sua existência no mundo exterior à obra? - aquele que, sim, diz respeito à justiça. Até que ponto o cinema não está sendo usado, como o foi diversas vezes na História, como mera ferramenta de causas que lhe são externas, sejam elas eleitoreiras, publicitárias, moralistas ou até mesmo pornográficas? O que o caso A Serbian Film - vetado a partir de um processo movido por políticos profissionais - diz sobre a maneira que a sociedade brasileira é vista pelas pessoas que se dispõem a comandá-la, e que buscam em uma manobra tão baixa e despreparada responder a uma demanda que eles acreditam que ecoará na sociedade?

Não cabe à Cinética, uma revista de crítica de cinema, se colocar como juíza de todas essas ações - postura que temos como cidadãos e eleitores, mas que foge do lugar que escolhemos como profissão de fé. À Cinética cabe exatamente aquilo que nos foi negado: o direito de ver e pensar uma obra de arte. Não pudemos, portanto, assistir a A Serbian Film para chegarmos a qualquer conclusão sobre ele. O destaque no cabeçalho da revista vem não só como um protesto à censura do filme, mas também como a afirmação de que, mesmo sem ser visto, A Serbian Film - ou qualquer outro filme - nos interessa mais e nos diz maior respeito do que toda a polêmica que foi criada em torno dele. Esperamos poder confirmar esse interesse com uma crítica - seja ela qual for, desde que em cima de um filme visto - assim que toda essa série de atrocidades que vemos fora do filme chegar a um fim.

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As melhores respostas sobre e para o cinema estão sempre nos filmes. E é uma feliz coincidência - se é que há algo de feliz em todo esse episódio - que nosso destaque para A Serbian Film venha junto com textos que tratam frontalmente de questões que essa proibição nos obriga vasculhar. Lidar com uma presença histórica tão vultosa quando a censura é um pouco como pensar o cinema: é preciso reconhecer a história não só por o que dela se cristalizou, mas também como organismo vivo em contato com o presente. É preciso lidar com o passado sem usá-lo como refúgio para nos alienarmos de nosso tempo. E se falamos de auto-imagem e do lugar do cinema na vida do país, nada melhor do que o confronto com um dos filmes e gêneros que melhor fizeram isso em nossa história: O Homem do Sputnik, de Carlos Manga. Visto hoje, O Homem do Sputnik pode ser pensado não só como documento de um momento do nosso cinema, mas também como uma chave que desenrosca alguns dos nós do cinema brasileiro contemporâneo. Esses nós aparecem também em duas críticas do Em Cartaz: Cilada.com e Assalto ao Banco Central. E se há sempre a possibilidade de se buscar na história um diálogo vivo e produtivo com o presente, há também a necessidade de se perceber filmes contemporâneos que se colocam como pensadores e críticos de sua própria época. É o caso de Road to Nowhere, de Monte Hellman (até o momento, exibido no Brasil apenas no Festival da Lume, em São Luis, mas com lançamento prometido para breve), e Cópia Fiel, o último filme de Abbas Kiarostami: dois magníficos "problemas críticos" (além de serem dois grandes filmes) que têm na natureza da imagem e na sua apropriação com referências - cinematográficas, mas não só - de uma verdade extra-fílmica uma questão central, como discutido no ensaio O processo da verdade.

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