História em vida
por Fábio Andrade

Aproxima-se o final do ano e, com ele, já é possível ouvir os primeiros gritos do coro fatalista que, Dezembro após Dezembro, se espalha como se o mundo é que estivesse chegando ao fim: o cinema não é mais o mesmo! Onde foram parar os grandes filmes?! A arte está em incontornável decadência! Há, nesse discurso de reveillon tão certo quanto as ondas puladas ou os caroços secos de romã, um necessário esforço de perspectivismo histórico, na tentativa de, com a frieza das listas ou dos balanços de época, tentar determinar o que realmente vai permanecer pra história. Por outro lado, esse desejo ofusca um outro dado de natureza também histórica: o cinema é uma arte juveníssima, praticamente recém-nascida. É possível que, em duzentos, trezentos anos, apenas um ou dois dos filmes que mudaram nossas vidas sejam realmente dignos de lembrança, e que, desse primeiro século de cinema, não mais do que meia dúzia de artistas realmente permaneçam como iluminações, espíritos históricos que obrigaram o mundo a amadurecer séculos em poucos anos. 

Não é sem ironia, portanto, que esse refrão finalista, ansioso por dar fim a coisas que talvez tenham só acabado de começar, se alinha perfeitamente à generalizada pressa contemporânea que teima em registrar, pelas câmeras dos celulares ou um Twitter em tempo real, o momento que deixamos de ver passar, existir de fato. É como se a história precisasse ser escrita antes mesmo de ela acontecer, enquanto não há história possível sem seleção, sem levar em conta que, quando tudo é história, nada é história. Com todos os problemas que há em Meia Noite em Paris, é difícil negar a Woody Allen certa precisão em seu diagnóstico sobre essa inquietação decadente do homem contemporâneo que está sempre lamentando o falecimento de um passado desconhecido e, com isso, realizado uma crítica frontal aos seus mais fervorosos críticos.

O pior que pode acontecer é essa pulsão que tanto demanda do definitivo perder justamente o fugidio, essa graça passageira e mundana de, antes de se ocupar da história do cinema, sentar em uma cadeira para ver um filme. Pois se pensarmos em 2011 não como um bloco estanque de datas, mas como uma sucessão de dias, é bastante nítido que o cinema seguiu trazendo obras no mínimo instigantes, além de momentos de enorme beleza. Entre os divisores de água, tivemos filmes como A Árvore da Vida, o próprio Meia Noite em Paris, O Garoto da Bicicleta, e mesmo Melancolia, sobre o qual a revista ainda deve palavras que não deixaram de correr em nossas listas internas. E quanto à beleza, temos em circuito, neste exato momento, diversos filmes que moveram textos com a certeza das belas obras: A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar; As Canções, de Eduardo Coutinho; Inquietos, de Gus Van Sant, com dois textos na revista; e também Adeus, Primeiro Amor, belíssimo terceiro filme de Mia Hansen-Løve.

É Adeus, Primeiro Amor que ganha nosso destaque aqui, não necessariamente por ser o melhor filme, embora seja belíssimo, sem dúvidas. Em primeiro lugar, o destaque serve como comemoração pelo primeiro lançamento comercial de uma diretora cujos trabalhos vêm nos impressionando desde sua estréia, com Tudo Perdoado – exibido no Rio pela primeira vez, inclusive, em uma Sessão Cinética – e que já tinha ganhado textos bem impressionados por aqui, resgatados agora na página principal. Em segundo, por ser um filme de notável beleza e maturidade de uma artista ainda bastante jovem, distante do estatuto de “mestre” que marca os trabalhos de Almodóvar, Coutinho ou mesmo Gus Van Sant. E em terceiro, por, neste enterro dos ossos que marca o último mês do ano, o filme de Mia Hansen-Løve vir quase como uma boa notícia do futuro, como atestado de algo que nasce e finca os pés em terreno fértil, cercado de boas companhias. É a chance de olhar para as coisas não com pessimismo ou otimismo, mas com algo que marca as melhores críticas: uma inabalável curiosidade. Adeus, Primeiro Amor é o tipo de boa notícia que qualquer apaixonado por cinema passa meses a esperar.

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Há, porém, um outro índice de mudança que demanda, inclusive, um redirecionamento do texto para a primeira pessoa. Por ter passado cinco meses de 2011 fora do Brasil, fiquei também boa parte do ano sem ter qualquer contato com novos filmes brasileiros. Se três, quatro anos atrás, esses cinco meses talvez não fizessem tanta diferença assim, hoje é palpável a sensação de que, somados o Festival do Rio, a Mostra de SP, a Semana dos Realizadores e o circuito tradicional, toda uma safra de filmes brasileiros de interesse passou pelas telas sem que eu tivesse condição de conhecer.

Por um lado, é necessário pensar o quanto os filmes não se tornam reféns desse sistema, muitas vezes tendo em uma única exibição seu atestado último de existência.  Mas isso cabe mais aos produtores, distribuidores e realizadores pensar do que à crítica, de fato. O que nos pareceu clara era a necessidade de se dedicar a essa coleção de filmes – com seu brilho e seus problemas –  com inteireza, algo que em alguma medida foi feito no Festival do Rio, e que agora se repete aqui com uma cobertura bastante abrangente da Semana dos Realizadores. Por diversos motivos, esse trabalho tomou mais tempo do que previsto e acaba chegando às páginas da revista com sensível atraso. Mas para a crítica, estar atrasada é condição de sobrevivência, e essa distância permitiu a ida aos filmes com uma disposição que à época não era sustentável e que esperamos que esteja impressa neste conjunto de textos.

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