Do centro às margens
por Fábio Andrade

Já há alguns anos, o calendário do cinema brasileiro, nos primeiros dois meses do ano, vive praticamente do que reverbera a partir da Mostra de Tiradentes. E se já percebíamos mudanças em curso – ou ao menos uma expansão no diapasão – na Premiere Brasil do último Festival do Rio, e na Semana dos Realizadores em 2011, a edição do 15o aniversário de Tiradentes sinaliza um reposicionamento razoavelmente claro da Mostra – algo que já foi tratado na cobertura do festival. Essa mudança, porém, parece acontecer menos diretamente nos filmes escolhidos – parte de uma produção inevitavelmente irregular, com filmes melhores do que outros, críticas melhores do que outras, conversas mais interessantes que outras... como em todos os outros anos – e mais no papel assumido pelo festival: muito por conta dos seminários/panoramas (da crítica e dos diretores), a Mostra de Tiradentes ganhou uma matiz de alguma forma auto-reflexiva. Do esforço conjunto dos vários encontros proporcionados pelo festival, fica a sensação de que algo não só está em transformação – ou já se transformou e provavelmente continuará se transformando, infinitamente – no cinema brasileiro que interessa à mostra (pensando pragmaticamente: os filmes lá exibidos e as pessoas lá presentes), mas também que há vislumbres possíveis de quais transformações são essas, e de o quanto e como esses mesmos vislumbres são diferentes uns dos outros. 

A Mostra de Tiradentes, porém, é apenas uma parte pequena e significativa do cinema brasileiro que, nos melhores momentos, parece catalisar choques, encontros e desvios sempre latentes na convivência das diferentes maneiras de se olhar, pensar, fazer e escrever sobre cinema. Um desses encontros chega em novo capítulo às páginas da revista, com a publicação integral da carta do cineasta Pedro Urano a respeito da crítica sobre seu filme (em parceria com Joana Traub Cseko), HU. Embora a carta tenha sido abordada e linkada em texto na cobertura de Tiradentes, ela agora ganha uma resposta de Juliano Gomes, autor do texto criticado pelo diretor, ampliando ainda mais o que já estava em curso. A carta de Pedro Urano é também uma materialização de conversas, discussões e embates que acontecem diariamente em um evento como Tiradentes, seja com realizadores, curadores, pesquisadores ou outros críticos, inclusive os da própria revista. 

Ainda reverberando a Mostra, mas não só, temos bastante material programado para seguir ecoando o cinema brasileiro na revista nos próximos meses – como uma entrevista já feita com Edgard Navarro (homenageado na Mostra do Filme Livre); artigo sobre Na Carne e na Alma, filme póstumo de Alberto Salvá; e uma pauta com alguns destaques da produção em curta metragem nos últimos dois anos. Além disso, estão atualmente em cartaz filmes de diretores que despertam imediatamente nosso interesse, como Nelson Pereira dos Santos e José Eduardo Belmonte, aos quais pretendemos ir em breve. Nesta edição, porém, nos distanciamos um pouco do nicho de Tiradentes em dois textos que apontam para contracampos bem distantes dentro da própria produção audiovisual brasileira: uma crítica a 2 Coelhos, de Afonso Poyart, e um ensaio sobre o programa Mulheres Ricas, da Rede Bandeirantes.

E já que falamos em Mulheres Ricas, falemos logo de Oscar. Afinal, o circuito dos cinemas comerciais, nesta época do ano, se parece um tanto mais com a televisão aberta: há algo de inevitável nesses filmes que nos cercam e sufocam por todos os lados, das bancas de jornais e às conversas de elevadores. Parte dessa carta de antepastos chega ao nosso Em Cartaz, com Cavalo de Guerra, Os Descendentes, Millenium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres, Margin Call, Drive, As Aventuras de Tintim e O Artista. (e o circuito oscarizado ainda reserva filmes que esperamos ter em breve na revista, como o Hugo de Martin Scorsese)

No entanto, por baixo desse intenso domínio, os nossos verdadeiros destaques vêm e vão nas bordas do circuito, se impondo na relativa marginalidade que o mercado lhes reserva: J. Edgar, de Clint Eastwood, e principalmente Caminho para o Nada, magistral filme de Monte Hellman. Embora seu lançamento seja pequeno e paulatino (não tendo chegado ainda ao Rio, por exemplo), Caminho para o Nada já havia rendido texto impactado por um primeiro contato, e agora volta às páginas da revista com a certeza de se tratar de um dos maiores filmes dos últimos anos. E como o cinema não vive só do presente – mesmo no presente –, entre as diferentes urgências deste começo de ano foi possível arrumar tempo para voltar algumas décadas e revisitar um clássico até hoje ausente das páginas da Cinética: Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone - revisto em cinema justamente por conta da mostra dedicada a Eastwood. Por motivos factuais e espirituais, o filme de Leone serve como companhia justa tanto a Hellman quanto a Eastwood - em uma trindade em nada santa, mas que rende grandes momentos de iluminação. 

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