Elevado 3.5,
de
João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo (Brasil, 2007)
por Andrea Ormond

Humana paisagem

A participação mais sentida em Elevado 3.5 é a da ausência. Não há neste documentário da tríade João Sodré, Maíra Bühler e Paulo Pastorelo qualquer abrandamento para o tanto de solidão em torno do viaduto Costa e Silva, marco da ocupação urbana em São Paulo. Apesar da rotina azucrinante de carros no andar de cima e pontos de ônibus, vendedores e transeuntes no andar de baixo, a vida do elefante branco não é das mais feéricas assim. O passado permanece à tocaia, e os 75 minutos parecem urrar para ele “Alô, iniludível!”, à moda de Bandeira, quando cantou a morte.

Sim, porque a morte e seus filhos próximos – os entes queridos e o tempo que se foram e nunca mais voltam – dão a tônica do vínculo que os entrevistados estabelecem entre suas próprias experiências e o chão de concreto armado. Existe uma simbiose tremenda, a ponto de se confundirem com ele, amarem-no. Dizem-se parte daquilo – e de fato o são. Tanto aqueles que conheceram o território antes da chegada do colosso de engenharia, quanto aqueles que aportaram após a desvalorização do local. Inaugurado em 1971, obra do arenista Paulo Maluf, o Costa e Silva barateou os imóveis afetados pela construção. Em 3.5 quilômetros, a linha que liga o centro à zona oeste da cidade fez as pensões se multiplicarem e gerou uma lenta, irreversível, diversificação de tribos. Cabem nelas os comerciantes e famílias de antanho, jovens hypados, travestis, taxistas, rebentos novos e antigos. 

É desses fantasmas que trazem na testa a insígnia de um regime de força – batizado em homenagem a ilustre presidente da República Federativa do Brasil. Como sói acontecer com os brancaleônicos projetos da ditadura de 1964 a 1985, os ataques e os elogios ao “Minhocão” são intransigentes. Entretanto, o documentário não caiu na armadilha tola de partir para dicotomia política. Nem a de narrar com princípio, meio e fim uma evolução cronológica. A janela de cada quarto que margeia o viaduto guarda passaporte místico, de humanidade brutal. As histórias do anonimato, do que podia ter sido e não foi, do que foi e não volta a sê-lo. De igual maneira, comentar a neurose urbana em São Paulo, a fúria da megalópole, seria chover no molhado. O que faz este Elevado 3.5 é destrinchar personagens reais e abrir dali novos cenários, sem perder o pano de fundo que dá título ao filme.

Tímidos como o senhor isolado, jogando pão para os pombos, lendo e ouvindo o idioma japonês em loop, sem emitir palavra. Pacatos como o que desenha a giz, na calçada, a casa antiga. Frutos de um sonho, como a aspirante a cantora de rádio e a antiga aluna da USP, que mora na Casa do Estudante desde os anos 60. O fotógrafo de vizinhos que teme a existência de um duplo seu, que ele ainda não conhece mas, quem sabe, enxergue nele o que ele próprio vê no público que voyeuriza. Há espaço, ainda, para os anárquicos – como o artesão que anda com uma boneca negra pelas imediações, capaz de discurso articulado sobre o porquê da atitude. É primo lógico do malandro enjeitado, octogenário, que diz preferir o inferno ao céu. Aliás, há de se contactar o além e averiguar se de fato isto aconteceu, já que o folgazão acabou falecendo no ano de gravação dos depoimentos (2006). A galeria de personagens foi obtida pela coleta de informações em três setores: no solo – rua propriamente dita –, em apartamentos na altura do viaduto – quase parede com parede – e nos últimos andares dos prédios. A estes se somam os passeadores eventuais, que fazem jogging aos domingos, dias em que o local é aberto ao público.

Por tantos motivos, “a voz roufenha das ruas” aflora na tela, desconstruindo o coro dos contentes, assim como o ramo da história oral produziu efeito semelhante nos bancos universitários. A partir de um estímulo inicial nos entrevistados, sacode-se, puxa-se o narciso de cada um e eis que se jogam na missão, lado a lado com o entrevistador. Interessante notar que no cinema brasileiro este elo com a matéria urbana criou registros de peso. Na linha city lights, destaque para o mítico São Paulo, a Sinfonia da Metrópole (1929), que dialoga ao longe com Superfícies Habitáveis - Memorial 2 (1974), de Flávio Motta e Marcello Nitsche, rodado sob os pilares da avenida São João. Superfícies Habitáveis..., por sinal, compõe a montagem de Elevado 3.5. Gera um contraponto ao tijolaço do início, em que Maluf impõe o microfone e deita longa explanação sobre a maravilha tecnológica que pretendia dar ao povo bandeirante.

Curioso que, àquela altura, quem flanasse por São Paulo poderia ver moçoilos sedentos por documentários, jovens como João Batista de Andrade, Maurice Capovilla e Vladimir Herzog. Sim, Vladimir Herzog, o “suicidado” mais famoso do governo Geisel, diretor do A Hora da Notícia, na TV Cultura. E se o flâneur entrasse em qualquer dos cines da época daria de cara com algum trailer da Amplavisão, do lendário Primo Carbonari – suposto defensor do golpe, um dos mais prolíficos autores brasileiros, a merecer renovado resgate. Memórias do país cindido, divisão que se agravou com o tempo. Algumas de suas nuances ancoraram no Elevado 3.5 e levaram o público da pré-estréia a ver-se a si mesmo. Tenda instalada no próprio Minhocão, num jogo de auto-reconhecimento, esta foi a melhor pedida possível para oferecer o filme ao território pleno de santidades e de idiossincrasias que se sucederam no tempo. Ainda que venha a ser demolido, como pretende o prefeito Gilberto Kassab, persistirá um feitiço no centro velho da cidade. Névoa feita de vultos que exumação nenhuma consegue apagar.

Julho de 2010

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