órfãos da embrafilme
Fragmentos de um acidente premeditado
por Cleber Eduardo
Um
jovem estudante de cinema de 2010, que começou a ver filmes
brasileiros após ou durante a repercussão de Cidade
de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), não
sentiu o cheiro de ralo dos anos 1990-1994. Talvez até
ignore esse perfume de quase morte, o fedor de peste desses curtos
e claudicantes anos, o peso de luto de um sobrevivente moribundo.
Quando Fernando Collor assinou a extinção da Embrafilme
em 1990, que até então ainda era o principal sustentáculo
da produção e distribuição de filmes
brasileiros, não terminou somente com a estatal do cinema.
Sua decisão foi tomada em meio a outras tantas que visavam
encolher a presença do Estado, contraditoriamente com uma
decisão autoritária do próprio Estado, de
modo a abrir o país para a economia do livre mercado, caminho
então considerado único para entrar no clube dos
países ricos.
A noção de riqueza era de pobreza
extrema. Ou atolada na burrice padronizada somente pelos números
da falsa exatidão da matemática. Porque não
se concebe uma noção de riqueza de uma nação
sem o equivalente cultural e artístico da saúde
financeira pretendida em 1990. Saúde financeira que começou,
cinicamente, com o confisco das poupanças. Não era
apenas uma empresa, portanto, que estava sendo extinta. O confisco
era mais amplo. Atingia o dinheiro de pessoas físicas e
a auto-imagem do país. O cinema brasileiro, como reflexo
e gerador de parte dessa imagem, também foi confiscado.
E mesmo quem dependia menos ou quase nada da Embrafilme tornou-se
órfão de sua inexistência por tabela. Ninguém
se salvou da draga. A nuvem negra substituiu o verde e amarelo
do logo de Collor.
A situação de precariedade generalizada,
com migração de mão de obra para a publicidade
(responsável pelo posterior inflacionamento de serviços
no período da retomada, após 1994), além
do sucateamento dos equipamentos, teve efeitos explícitos.
Os festivais de cinema, por exemplo, tornaram-se UTIs. O de Gramado
tornou-se misto, ibero-americano, por falta de filmes brasileiros.
O de Brasília corria atrás de filmes, quaisquer
filmes, porque, no contexto de então, rigor seletivo era
utopia. Alguns filmes só foram exibidos nesses espaços
ou em cineclubes e salas alternativas.
O
total de ingressos para os filmes brasileiros despencou de 20
milhões em 1989 (18% de market share), com 17 títulos
lançados, para 36 mil em 1992 (0,05%), com apenas três
lançamentos. Alguns cineastas nunca retornaram de fato
desse estado crítico. Outros, como Carlos Reichenbach e
Walter Lima Jr, reagiram de formas opostas: o primeiro anunciou
sua aposentadoria precoce para viver de música enquanto
o segundo pediu emprego por meio de anúncio no jornal.
A postura cabisbaixa era acentuada pela era Lazaroni na seleção
brasileira, quando, na Copa de 1990, os canarinhos foram eliminados
pela vizinha e rival Argentina, ainda nas quartas de final, com
aquele passe de Maradona para o gol de Caniggia. Vade retro!
"Orfãos da Embrafilme - O Cinema que
Quase Existiu", que exibe 18 longas metragens produzidos
ou exibidos pela primeira vez entre 1990 e 1994, encara de frente
essa fase de urucubaca. Caracterizados pela queda de produção,
lançamentos e de venda de ingressos, esses cinco anos foram
mais profundos em sua angústia. Não são apenas
frutos desse panorama, mas também reflexo e reflexão.
Voluntária ou involuntariamente, os filmes ofertam matéria
para se sentir esse tempo ligeiro, que parece ter durado eternidades.
Uma visão ou revisão atenta de cada um dos filmes
pode nos permitir sentir a atmosfera do espírito do tempo
por meio dos percursos dos personagens.
Pela primeira vez, esse grupo de filmes gerados
naquele contexto, muitos deles mantidos até hoje na incubadora,
são reunidos, seja para serem reapresentados em outro panorama
de percepção (o do século 21), seja para
serem apresentados pela primeira vez, pois é enorme a indiferença
e a ignorância em relação a eles - menos por
escolhido desinteresse e mais por contingências históricas.
A distância dos anos e dos filmes, que poucas vezes foram
revistos e revisados criticamente, nos colocam uma venda nos olhos.
"Orfãos da Embrafilme" tem esse
objetivo, portanto, de retorno às propostas estéticas
e dramáticas, agora sem o espírito de luto generalizado
e de sebastianismo do olhar, para ver os filmes com mais sobriedade.
Muito se falou do sistema de produção, dos fracassos
e das esperanças mortas pelo caminho, mas pouco dos filmes
em seu conjunto. O que expressavam esses filmes? De que forma?
Serão apenas trabalhos sintomáticos de uma doença
anterior a eles ou apontam essa doença sem estarem necessariamente
por dentro dela?
Um estudo mais amplificado da produção
desses cinzas anos não teria como ignorar a estreita relação
do corpo fílmico com o esqueleto político e econômico
do país. O cinema natimorto da gestão Collor-Itamar
foi abortado pela lógica da oferta e procura do livre mercado,
que, em uma atividade onerosa e ocupada pelo produto estrangeiro,
tornou-se lógica da falta de oferta e da ausência
da procura. Havia pouco a oferecer, quase nada a procurar e, quando
surgia algum filme em festivais ou no estreito circuito de lançamentos,
a reação era de lá ou cá.
Depositava-se o messianismo do salvador da pátria
nos filmes assinados por diretores já com uma marca autoral
construída (Nelson Pereira dos Santos, Carlos Reichenbach),
ou, por outro lado, via-se as marcas confirmadoras de um moribundo
condenado à poeira. Quando algum filme conseguia um espaço
em festivais internacionais, a tendência dos críticos
de grande jornal era esperar a salvação imediata,
como se um único título pudesse colocar todos os
demais em uma arca de Noé. Um jornalista em especial, em
uma dessas ocasiões, começava assim seu texto: "Ainda
não foi dessa vez".
O
mantra da menina de A Terceira Margem do Rio (1993), de
Nelson Pereira dos Santos, parecia clamar por menos ansiedade:
"Deixa, deixa!". A razão era evidente. Nesses
cinco anos, apenas dois filme, A Terceira Margem do Rio,
selecionado para Berlim, e Veja Esta Canção
(1994), de Cacá Diegues, exibido em Veneza, entraram em
festivais de primeira linha. Mesmo mais recentemente, quando se
menciona de passagem aquele momento, o filtro é estreito.
No artigo de Luiz Zanin Oricchio em "Cinema Mundial Contemporâneo"
(Papirus, 2008), por exemplo, o crítico menciona apenas
três títulos desse período de coma da produção
nacional: Capitalismo Selvagem (1993), Perfume de Gardênia
(1992) e Alma Corsária (1993), ou seja, três
projetos de autor do segmento paulista daquela safra.
É compreensível. Correndo o risco
de soar anedótico (sem ter essa intenção),
e consciente do reducionismo à espreita (não com
esse objetivo), posso lançar uma hipótese. Era por
meio dos autores mais legitimados que se esperava a redenção
naquele período. Sintetizemos essa expectativa de prestígio
na figura de Nelson Pereira, com toda a força da tradição
presente em seu nome. No entanto, os primeiros sinais de vitalidade,
de renascimento, de saída do traço do aparelho de
mediação cardíaca, vieram de outros nomes
(e propostas). Primeiro com o humor em alguma medida televisivo
e chanchadesco de Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati,
depois com a dramaticidade e com a narratividade de minisérie
global de O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto.
Uma atriz com ambições de diretora
e um diretor sem tanta envergadura. Ambos conectados à
matriz televisiva (de alguma forma). Um fez mais de um milhão
de espectadores. Outro foi ao Oscar e também teve seu milhão.
Foi pelas zonas do comércio, e não do autor, que
a reconstrução começou a ser possibilitada.
E o encontro entre as duas vertentes, padrão contemporâneo
de nosso cinema de exportação, se deu com Walter
Salles e Central do Brasil (1998), que talvez possa ser
considerada a soma de Fábio Barreto e Nelson Pereira, com
toda carga simbólica e imprecisa dessa comparação
e dessa soma de vertentes.
Por meio dos filmes
A
mostra começa com propostas ainda convictas nas possibilidades
de uma inserção no imaginário do público.
Manobra Radical (1991), de Elisa Tolomelli, é filme
com forte intenção comercial, com espírito
jovem e o cultivo do sonho de prazer e sucesso. Matou a Família
e Foi ao Cinema (1991), de Neville d'Almeida, procura a conciliação
(ou tensão?) entre a referência ao cinema de autor
dos anos 60, via Julio Bressane, e uma forma de atualizá-lo
a partir de apelo erótico rasgado/avacalhado. Sua chegada
era um disco voador aterrissando sobre o discurso estético
da higiene e do bem fazer profissional daquele começo dos
90. Há um senso de pós que, nas sessões seguintes,
é confirmado.
O Escorpião Escarlate (1990), de
Ivan Cardoso, lida com o cinema de gênero auto-consciente
e autoparódico de Ivan Cardoso, que vinha se afirmando
e se confirmando desde os anos 80 como possibilidade alternativa
de entretenimento com provocação. Essa vertente
seria depois arquivada na chamada retomada (após 1994).
A Maldição de Sanpaku (1991), de José
Joffily, limpa a consciência interna para tentar afirmar
o gênero - o thriller à brasileira - com menos holofotes
para a própria noção de representação.
Capitalismo Selvagem (1993), de André Klotzel, por
sua vez, tem a consciência interna - como O Escorpião
Escarlate - mas, em vez de auto-paródia, opta por manusear
os clichês e os códigos de outras formas de representação.
Essa consciência avança em outra
sessão, com Perfume de Gardênia (1992), de
Guilherme de Almeida Prado, seu filme mais dolorido e menos reconhecido
em seus êxitos, mas também com Alma Corsária
(1993), de Carlos Reichenbach, e Rádio Auriverde
(1991), de Sylvio Back. Nestes dois casos específicos,
as camadas de representação lidam com dados da realidade:
os anos de chumbo e a II Guerra Mundial. Um pela poesia, outro
pela chacota. A maioria desses filmes termina em perdas, declarações
de fracassos ou senso de derrocada. Se tiveram dificuldade de
legitimação crítica imediata, talvez seja
porque se esperava uma redenção pela filiação
já distante do Cinema Novo, rechaçado como matriz
única na segunda metade dos anos 80, ou porque se acreditava
na invenção de um novo cinema ainda sem uma cara
clara.
E
quais caras e corpos eram dados a ver ou a ficarem quase invisíveis?
Se olhamos e sentimos Claudia Raia e Luma de Oliveira tentando
se imporem como musas, o esforço em investir em atrações
de bilheteria em momento de bilheterias ralas se dará com
atrizes reveladas nos anos 70/80, como Lucélia Santos,
Maria Zilda, Fernanda Torres, Andrea Beltrão, Christiane
Torloni e Maitê Proença, todas elas em algum nível
reconhecidas em seus trabalhos de televisão. Entre os atores,
temos como presenças mais freqüentes Nuno Leal Maia,
Chico Dias, Antonio Fagundes e José Mayer. Cláudio
Mamberti é um coadjuvante constante. E Selton Mello, nome
dos anos 2000, já aparece no começo da década.
No entanto, sem querer olhar para trás,
nem ter como olhar para frente, essa produção precisa
ser vista, hoje, como um intervalo. Ou como afirmação
de uma crise. Não se pode apenas ver nela a continuidade
de propostas do fim dos anos 80 - embora muitos carreguem ecos
daquele fim de década de um país comandado por um
vice não eleito (José Sarney), após mais
de 20 anos de regime militar - e ainda não se enxerga novidades
ou arejamentos depois desenvolvidos na segunda metade dos anos
90. Esses cinco anos, portanto, parecem autônomos. Uma zona
intermediária, um rumble fish debatendo-se contra sua própria
imagem no reflexo do aquário, como no filme de Francis
Ford Coppola.
Vai Trabalhar Vagabundo II - A Volta (1991),
de Hugo Carvana, procura retornar a uma matriz popular, a comédia
carioca de malandro, mas já sem o espírito de malandragem
feliz do primeiro. É como se o malandro agora não
tivesse mais vez. Neste sentido, Veja Esta Canção
(1994), de Cacá Diegues - filme feito para televisão
e exibido em episódios na TV Cultura, com posterior carreira
no cinema -, insufla poesia, ou mesmo esperança, em momento
pouco propenso a isso. Mas, como cada episódio parece ter
um DNA próprio, essa soma soa como disjunção,
como se a articulação homogênea não
fosse mais possível.
A
Rota do Brilho (1990), de Deni Cavalcanti, parece de outra
época nesse panorama - a da Boca do Lixo, no começo
dos anos 80 -, mas só foi lançado por sua oportunista
contemporaneidade. Se o protagonista era o então galã
marombado Alexandre Frota, a maior atração era a
nudez de Lilian Ramos, que, semanas antes da estréia do
filme no popular Cine Marabá, em São Paulo, tinha
sido fotografada desprevenida e desprecavida, em contra-plongée,
ao lado de Itamar Franco, o segundo vice consecutivo a ocupar
a presidência. O episódio ficou conhecido como o
palanque da perereca desnuda, tendo em vista a condição
à vontade da moça e seu vestido de pouca centimetragem.
Não era a única evidência
de um cinema aparentemente deslocado de seu tempo e, justamente
por conta desse deslocamento, tão em sintonia com essa
procura sem mapas daquele momento. Boca de Ouro (1990),
de Walter Avancini, e Barrela (1990), de Marco Antônio
Cury, retomam a tradição dos anos 60-70 de adaptações
de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, como se, ao basear-se
nessas fontes, o misto de popularidade e erudição
estivessem garantidos de largada. No entanto, o relativismo das
versões do primeiro e o confinamento do segundo, em última
instância, dizem algo de seu momento, pautado por incertezas
e por outro tipo de asfixia que não mais a dos anos de
ditadura.
Esses dois títulos são reflexos
desses anos de transitoriedade entre a Embrafilme e a retomada,
entre João Baptista Figueiredo, José Sarney, Fernando
Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique, transição
essa acidentada e esvaziadora das utopias. Esse cinema da distopia
continuou em alta, com outros enfoques e formatos, na segunda
metade dos anos 90 e em parte dos anos 2000, com um número
expressivo de filmes nos quais os personagens fogem de seus lugares,
não mais em uma dinâmica de exílio político,
mas existencial, afetivo, social e econômico. Terra Estrangeira
(1995), de Walter Salles, do início do momento pós
fratura, é o paradigma disso.
Essa transição prolongada talvez
encontre uma síntese no título do filme de Nelson
Pereira dos Santos. A Terceira Margem do Rio (1993), adaptação
de contos de João Guimarães Rosa (autor menos da
observação crítica e social que Nelson Rodrigues
e Plínio Marcos, porque mais engendrado nos labirintos
sonoros e poéticos da língua e da linguagem), alinhava
três segmentos narrativos, não para afirmar algo
sobre o mundo, mas para interrogar esse mundo com exclamações
de mistério e de não entendimento. O cinema à
margem estava em um lugar marginal dentro dessa margem, em uma
terceira margem, que precisaria ser inventada e não apenas
ocupada.
A
margem sempre foi o lugar no qual o cinema de Ozualdo Candeias
foi colocado sem pedir para ficar. Desde 1967, quando seu A Margem
abriu alguns olhos, Candeias vinha persistindo, sempre com produções
formatadas pelas circunstâncias. O Vigilante (1992)
foi seu último filme. Um dos mais violentos, dos mais duros,
de dentes cerrados, de punhos fechados. É da tradição
da margem que é emitido o grito mais feroz. Mas ninguém
ouve. O grito de Candeias, ecoado no gueto dos cinéfilos
muito aguerridos e dos críticos mais empenhados, ficou
inédito. Num momento de discursos oficiais de inserção
no primeiro mundo e de denúncias de corrupção
com tratamento de novela mexicana, Candeias reage com as imagens
de um mundo regido pela violência e pela degradação.
Da margem do rio ao fundo do mar. É curioso
como as escolhas dos materiais filmados desse momento têm
forte apelo metafórico em relação ao próprio
momento do país. Oceano Atlantis (1993), de Francisco
de Paula, por exemplo, vai às profundezas do oceano e,
em uma realidade paralela, encontra uma civilização
escondida. Stelinha (1990), de Miguel Farias Jr, também
desce a ladeira: é a trajetória de um naufrágio
humano, de uma cantora que sente a luz apagar, como um anúncio
das trevas logo na esquina. O peso das angústias, quedas,
dúvidas e ceticismos marcam os filmes do período.
O bode só começa a passar quando Carlota Joaquina
ri dos antepassados históricos, uma forma de assumir um
lugar sem deixar de ser cruel com esse lugar.
Antes do bode passar, porém, surge uma
esperança. Louco por Cinema (1994), de Andre Luiz
Oliveira, é a uma vela nesse sentido: um percurso de retorno
à superfície, que acena para os anos a vir no cinema
brasileiro, tendo em vista que lida com um filme abandonado, com
um ser posto de lado da convivência, com a possibilidade
de filme e homem retomarem o percurso interrompido.
"Orfãos da Embrafilme" reúne
esses filmes não para expô-los como filmes doentes,
filmes natimortos ou filmes reflexos, mas para mostrar com quais
imagens o cinema brasileiro resistiu em um de seus momentos mais
difíceis, porque, para ter havido uma retomada, foi necessário
ter havido esses filmes da zona intermediária entre os
anos 80 e 90. Se brigaram com a percepção de seu
tempo - o começo dos 90 -, talvez agora, no fim da primeira
década do século 21, esses filmes possam ser vistos
por eles mesmos, sem tantas responsabilidades e frustrações
depositados sobre eles em seus nascimentos. Sejam bem vindos!
Fevereiro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
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