Em Teu Nome, de Paulo Nascimento (Brasil, 2009)
por Rodrigo de Oliveira

A política do colaboracionismo retardatário

Em Teu Nome
começa com os letreiros explicativos protocolares que abrem todos os filmes brasileiros (bons ou ruins) a lidar com o período da ditadura militar. A primeira impressão é de que servem para informar um contexto desconhecido a platéias estrangeiras que o filme eventualmente atingirá, mas talvez seja necessário, mesmo às platéias nacionais, despejar estas frases de livro ginasial com o peso dramático da trilha sonora trovejante, para não deixar dúvidas sobre a seriedade não só daquelas informações como do próprio projeto do filme. Meses atrás João Batista de Andrade realizou uma série de programas para a tevê pública onde, entre várias coisas, ficava claro que ainda há uma ignorância fundamental numa parcela grande da população sobre o que de fato aconteceu em 1964. Em Teu Nome, didático e voluntariosamente clássico, não só nos letreiros como em todas suas seqüências, talvez esteja mirando exatamente neste público, justo este das classes mais pobres que está exilado das salas de cinemas há duas décadas e que possivelmente ainda engula esta aula duvidosa de moral e cívica por pura falta de parâmetros de comparação fílmica ou conhecimento histórico prévio (é possível que não tenham esbarrado num Batismo de Sangue pelo caminho para tomar a lição).

Mas a verdade é que os letreiros aqui significam outra coisa. Dizer que “no fim dos anos 70 o Brasil enfrentava um duro regime militar” ou que “alguns grupos acreditavam que a única maneira de resistência era a luta armada”, dizer isso com a auto-importância de quem revela um segredo há muito guardado só pode ter o sentido de se querer ali, no começo do filme, refundar a História. Ou melhor, estabelecer que tudo o que se passa no interior do filme obedece tão somente a essa “nova História” que ao filme coube inventar para dar conta do excesso de realidade que transborda das palavras e que parecem impossíveis de se dominar enquanto cena, enquanto drama disposto ao registro. Só podemos dar alguma credibilidade ao que aparece na tela se começarmos do zero, tabula rasa da consciência político-histórica brasileira, um acordo tácito de esquecimento. E é tão estranho que Em Teu Nome exija essa ignorância compartilhada, porque está exatamente num dado do real concreto sua sustentação mais vigorosa.

Isto só ficará claro no plano final, quando aparece João Carlos Bona Garcia, o guerrilheiro e exilado verdadeiro que inspirou o Boni da ficção de Paulo Nascimento. Caminhando em direção à câmera, em velocidade alterada, sol tomando a tela, novamente voltamos aos letreiros, dessa vez numa frase dita por Bona explicando se valeu mesmo à pena passar por todo o sofrimento das torturas, humilhações e fugas constantes. A resposta pouco importa: o personagem real só está ali para afiançar o relato que o filme fez sobre sua vida e, por tabela, tudo aquilo que o filme disse sobre sua época. Sua presença é uma espécie de passe-livre concedido a Paulo Nascimento, uma vez que a responsabilidade sobre o que se dá no filme não é dele, da ficção, mas “da vida”. E a vida, como Bona e os 20 anos de história brasileira repisados aqui, não tem responsabilidade nenhuma sobre o que a ficção de Paulo Nascimento faz com eles.

Em Teu Nome acredita na escola eu-estou-grávida-de-Luís-Carlos-Prestes de dramaturgia. Se sua aproximação de um certo cinema de ação é pífia (um assalto à mão armada que dá errado em todos os sentidos, uma invasão salvadora à Embaixada da Argentina que faria Uwe Boll corar), é quando se dedica à “humanização” dos guerrilheiros, ao registro dramático dos bastidores de uma guerra de onde só se permitia ver a falsa imagem oficial, é ali que o filme mostra realmente a que veio. Tornados um punhado de clichês ambulantes que só sabem se expressar via frases de efeito gritadas como se fossem grandes elucubrações filosóficas sobre a vida e a política, estes personagens parecem decalques de uma propaganda do regime que pretendesse desqualificar a resistência pelo simples fato de serem um bando de idiotas autodestrutivos batendo cabeça em nome de conceitos duvidosos e causas pouco esclarecidas – mas tudo isso é feito com a melhor das intenções, é o que parece gritar a presença do personagem real no fim do filme. O que deveria servir como imagem alternativa àquele discurso oficial acaba se colocando ao lado deste, por inocência, falta de talento ou pura perversidade mesmo.

Na verdade, esse é um limite que Em Teu Nome talvez nem tenha consciência de que ultrapassa, mas ele não se torna menos abominável por isso. Essa postura de grande exercício de reparação da importância histórica de um personagem isolado que é metonímia de uma geração peca exatamente por não ter a menor idéia da razão pela qual este personagem foi apagado, o porquê desta geração ter sido chamada de terrorista antes de mesmo revolucionária. Em Teu Nome segue observando as aparências, encantado pelo exterior, ali onde o grito é sempre mais atrativo do que aquilo que é gritado (até porque, quando se presta atenção nele, não se ouve mais que um “a gente não pode andar de mão dada enquanto o povo apanha na rua!”). É um caso de miopia que atinge seu pior quando passa a ser também injusto com o objeto ao qual, supostamente, resgata e homenageia. Isso porque o que há de mais impressionante na trajetória de Bona não é exatamente sua atuação de guerrilha (que o filme resume ao tal assalto que dá errado e um punhado de reuniões de cúpula), nem mesmo o processo de tortura (terrível, mas ainda assim uma experiência compartilhada por muitos outros revolucionários e já fartamente registrada pelo cinema brasileiro, e que Em Teu Nome trata de maneira surpreendentemente comedida).

Bona, sua mulher e seus companheiros de organização foram do grupo de banidos do país em troca da soltura de um embaixador seqüestrado (da Suíça, em 1971), e é o tempo vivido no exterior, a falta de uma referência pátria e o que isso permitia de espaço para a corrosão pessoal via rememoração das perdas morais sofridas que parece estar em jogo aqui. Estamos falando da experiência de novos espaços que se habitam sem nunca se pertencer a eles, e de um tempo que se cria na suspensão dele próprio, que parece se dar no presente apenas por obrigação física, uma vez que é da retomada de um passado e da possibilidade de um futuro que se vive de fato. A resposta de Em Teu Nome a isso é a vontade de bater um estranho recorde de filme com mais seqüências por minuto da história do cinema brasileiro: não há cena que dure mais de 30 segundos, não há situação dramática que possa de fato se apresentar e se resolver no ritmo que lhe é próprio, porque há pressa, é preciso dizer tudo muito rápido e passar para o momento seguinte como numa gincana rigorosamente cronometrada. Passamos pelo Chile, pela Argélia e pela França; os personagens estão lá, falam, interagem, e à montagem não cabe mais que tornar tudo um clipe dos “melhores momentos” de uma trajetória de vida que teve tão pouco destes.

A demarcação dessa incapacidade de Em Teu Nome está mais bem impressa na Lenora interpretada por Silvia Buarque com uma dignidade quase dissonante em relação ao registro que merece do filme. Em sua primeira aparição, numa reunião da organização para decidir suas ações armadas, Lenora aparece de canto, não fala, tem no máximo um plano de reação a alguma frase de efeito dita ali. Sabemos que é mulher de um dos guerrilheiros, mas logo se apaixona por outro, e segue não falando. Presa, quando se reencontra com os amigos pouco antes do exílio no Chile, conta que um de seus torturadores se masturbava em seu rosto. É um plano lindo, porque terrível e francamente assustador, e ali talvez se pudesse finalmente entender aquilo que o filme parecia desejar e nunca conseguia. É possível ver o abismo que se cria entre aquela mulher e sua própria história, um descolamento irreversível. Mas precisamos ser rápidos nas impressões: não temos nem um segundo de intervalo entre o rosto devastado de Silvia Buarque e um plano odioso da mulher de Bona no auge do trabalho de parto, matando a gritos tudo aquilo que quase se construíra no momento imediatamente anterior. Em Teu Nome será forçado a fingir-se lacunar sempre que estiver diante de Lenora: primeiro a depressão profunda, depois o suicídio, e assim passaremos ao largo da única personagem que parecia ter alguma vida interior – ignorada, colocada de lado em nome da trajetória mais heróica do protagonista. Em Teu Nome, mais uma vez, preferiu a versão dos vencedores (e para o filme, essa perigosa aproximação de destinos entre carrascos e vítimas nunca é sequer problematizada). Lenora, a que foi vencida, a que não se oferecia pela aparência e que, por isso mesmo, exigia um olhar mais dedicado, mais conseqüente, esta fica para depois. E assim o cinema também vai criando a sua própria lista de desaparecidos políticos.

Agosto de 2009

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