Em Um Mundo Melhor (Hævnen),
de Susanne Bier (Dinamarca/Suécia, 2010)
por Pedro Henrique Ferreira
Santa
solidão...
Antigamente, quando se traçavam
estórias paralelas, visava-se elaborar uma tensão
entre ações que viriam naturalmente se chocar. O
paralelismo atual, por sua vez, serve mais para criar uma afinidade
espiritual entre ações que co-existem em distância
e talvez jamais se encontrem, ou cuja ligação se
dá por dados acessórios. É mais comum o cineasta
contemporâneo juntar um palestino e um muçulmano
em situações paralelas sob um mesmo regime sensível
e apelativo, como se a experiência de ambos no mundo fosse
a mesma, do que colocá-los lado a lado em diálogo.
As motivações desta inversão são facilmente
dedutíveis e indicam uma perda absoluta da dimensão
dialética do mundo, uma perda com a qual o médico,
figura central de Em um Mundo Melhor, até o fim
compraz.
Inserções de paisagens, efeitos dramáticos
de luz, personagens com olhares distantes, desfoques críticos,
sorrisos de crianças tristes e abraços permeados
por trilhas etéreas: são estes alguns recursos
no compêndio ao qual Susanne Bier inocentemente recorre
a fim de expressar uma melancolia, um certo estado das coisas
que Em Um Mundo Melhor parece, em sua trama, querer diagnosticar.
Mas essa empreitada será alavancada por um mecanismo contraditório,
um minimalismo grandiloqüente que veste um dado simples,
íntimo e pessoal como um fenômeno magnânimo.
Assim, a violência de duas crianças dinamarquesas
desvelando as injustiças de seu bairro teria o mesmo embrião,
a mesma causa sui generis, dos violentos conflitos tribais
africanos. Passa-se ao largo das conotações políticas,
das relações sociais, dos condicionamentos históricos
ou das diferenças étnicas fundamentais, pois o que
importa à cineasta dinamarquesa é como ambas, igualmente,
afetam a sensibilidade do indivíduo.
A África, inorgânica, torna-se receptáculo de uma crise pedagógica européia. As descobertas e experiências da juventude perdem em intimidade e são proporcionalmente elevadas a um status de mundo. Trata-se de um estatuto onde a obra de arte vira expressão da individualidade e veiculação da sensibilidade de um sujeito auto-centrado, incapaz de virar os olhos para o lado, se surpreender com uma experiência e se reinventar. A contradição última de Em um Mundo Melhor está em prescindir absolutamente do mundo; vê-lo sucumbir para a expressão de um sentimento individual, na mesma medida em que projeta esta absoluta e romântica ultra-sensibilidade sobre este mesmo mundo, sobre a matéria que filma. O mundo de Susanne Bier é inocente ao ponto de não resistir jamais: é, tal qual seu leitmotif, um conjunto de crianças negras correndo atrás do jipe de um médico dinamarquês, figura central do longa-metragem, angustiado com um mal que não pode curar.
Como
muitas expressões artísticas contemporâneas,
Em Um Mundo Melhor exercita a monotonia. Ditado sob a
mesma nota, de tom unívoco, repetitivo e contínuo,
as imagens que nascem da sensibilidade deste narrador não
conseguem se tornar efetivas variações sobre um
tema - tampouco, como se passa num serialismo, um conjunto limitado
de imagens que se repetem criando expressivas variações
de intervalos e ritmos. São partículas soltas, desgarradas
de seus sentidos de nascença, que visam servir à
sempre onipotente melancolia que habita a alma do protagonista.
São as tais "situações ótico-sonoras
puras" deleuzianas, fedendo do que lhes há
de mais abstrato e conceitual, travestidas agora em poços
de sensibilidade.
Nunca vemos um sorriso alegre, uma piada engraçada, um
gesto jocoso, uma violência traumática, um acesso
de cólera, um olhar apaixonado ou um corar envergonhado
sem que estes sejam atravessados pelas dúvidas do Dr. Anton
(Mikael Persbrant), compondo uma tristeza, uma atmosfa ad
infinitum que não precisa ser positivamente ativada
por eventos mundanos. A única graça permitida é
involuntária, quando, na metade do filme, dá-se
conta de que se, estilisticamente, o filme implora por lágrimas
em abundância, os conflitos ainda mal se desenrolaram. Então
pergunta-se: por que já devíamos estar chorando?
Para Bier, com seu narrador onisciente do drama subjetivo, os
fatores já (e sempre) estariam dados, e nada irrompe ou
muda o rumo das coisas - nada muda a sensação do
indivíduo. Resta o porvir catastrófico de um olhar
que sofre desde os algarismos iniciais, pois já conhece
o resultado da equação e não permitirá
que nada se subtraia. Resta enclausurar-se numa casca de sensibilidade,
travestida em ideologia, pois o mundo é violento demais,
doloroso demais para encará-lo abertamente. No interior
da tartaruga haveria um sentimento opaco que seria milagrosamente
universal, do norte europeu à África.
Para armar seu panfleto da paz universal, a inconseqüente
Bier evita a todo custo o embate e a violência; evita a
impureza. Por violência, entende somente a morte e a anulação.
Ao evitá-la, evita também a potência do conflito,
a dialética. Durante o filme inteiro, dois planos não
se tocam sem entre eles armar-se uma breve elipse. E não
se trata de uma narrativa elaborada por jump cuts godardianos.
Tratam-se de seqüências com unidades dramáticas
espaço-temporais deveras lineares, onde, na ligação
de dois planos, a diretora sente a necessidade de criar um hiato.
Nunca pode haver um laço dialético. A dialética
exige explosão e mudança, violência, por vezes,
supressão, mas também contato. E Em um Mundo
Melhor não quer contato. Pois o contato pode sempre
evocar uma perigosa mudança interior a qual o filme não
parece disposto a aceitar.
Um
resultado involuntário do diagnóstico de Em
um Mundo Melhor nos revelaria que a perda da dimensão
dialética nasce do temor originado por fenômenos
traumáticos do século XXI - guerras; suicídios;
terrorismos; o fim de um relacionamento amoroso. Arrebatado por
elas, cansado e culpado, o homem abdica da necessidade que a vida
sempre lhe traz de assumir uma postura. Quando o Dr. Anton (Mikael
Persbrant) deve curar um estuprador violento, o faz como um protocolo
do qual padece, e, ao final do dia, diz ao filho, que realmente
precisa dele, que teve um dia cansativo.
Subcutaneamente, o artista exime-se, padece, sofre, exíla-se
e enclausura-se. Por isto, tudo se filma à altura dos olhos:
são meras imagens sobre as quais não se pode agir.
A válvula de escape é tornar sensível seu
sofrimento, projetar um paraíso, um "mundo melhor"
inatingível, inaplicável. Mais recalque do que idealismo.
Tal qual diz a carta poética da mãe falecida ao
jovem dinamarquês, "ver em teus olhos as lágrimas
já é um perdão"; emocionar o espectador,
expondo seu eterno e pujante sofrimento, é o bastante para
Susanne Bier. Para isto, ela não titubeia ao excluir em
absoluto da narrativa a reação de dois personagens
- excluir da África o terrorista espancado com sua gangue;
e da Dinamarca o mecânico que tem sua van queimada. O ciclo
de violência se interrompe porque a um dos partidos não
é permitido revidar. Mas para construir seu mundo melhor,
a diretora, não sem inocência, finge que isto acontece
por que um menininho sentiu culpa pelo seu gesto. Em realidade,
esta emoção de adulto sábio que o filme a
todo momento quer nos forçar goela abaixo fará as
mamães e os molengas chorarem, mas dificilmente os fará
rever suas próprias vidas.
Apesar de tudo, Em um Mundo Melhor não é em si mesmo um problema. Ele está afundado em um problema, afogando-se na pior de suas ondas. Somente reconhecendo este problema obtuso é que algumas de suas qualidades se tornam mais claras: o filme é coerente consigo mesmo em todos os aspectos da mise en scène, e por isto, vez ou outra consegue extrair das situações uma fagulha de força dramática sem ter de recorrer a recursos de estilo. Por isto, também, torna-se uma carta de intenções onde podemos ver com clareza estratagemas bastante típicos de filmes que se aproximam de sua categoria. Em seus melhores momentos, o filme flerta com Minha Terra, África de Claire Denis, a diretora da grande culpa européia. Mas sempre dá um passo para trás. O que talvez falte a Susanne Bier é exatamente a radicalidade que faz, de uma crise, uma crise; que leva os efeitos às últimas conseqüências, ainda que esteja absolutamente equivocada. Isto é um tanto quanto impossível a quem não acredita na capacidade do homem de reinventar a si mesmo e a quem não acredita que o mundo resistirá, que nem sempre correrá atrás de nosso jipe sorrindo.
Março de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |