Encarnação
do Demônio, de José Mojica Marins (Brasil, 2008)
por Francis Vogner dos Reis O
despertar da besta
O ano de 2008 entra para a
história do cinema brasileiro por dois acontecimentos singulares: o primeiro foi
a estréia em circuito de Andrea Tonacci com Serras da Desordem, trinta
e oito anos depois de seu Bang Bang, um clássico que nunca entrou em cartaz.
O segundo é o retorno de José Mojica Marins à direção, com a volta de Zé do Caixão
aos cinemas fechando a trilogia iniciada há quarenta e quatro anos. Mas será que
algumas mudanças inevitáveis nesses quarenta anos seriam boas ou ruins para o
Zé do Caixão e José Mojica Marins? Será que o diretor conseguiria adequar seu
estilo, sua visão, ao modelo de produção atual? E talvez o que mais preocupava
era a seguinte questão: Zé do Caixão, depois de tantos anos, não tenderia a uma
caricatura grotesca e a influência de seus atuais parceiros (o roteirista Dennison
Ramalho, os produtores irmãos Gullane e Paulo Sacramento, este também montador)
não descaracterizaria seu cinema em favor de um abrandamento de suas qualidades
mais marcantes, hoje consideradas ainda mais toscas e infames? Pois
o surpreendente em Encarnação do Demônio é que, apesar do esquema de produção
diferente e dos parceiros de personalidade forte, o cinema do diretor está intacto.
Hoje, optar por um cinema eminentemente pobre e radicalmente artesanal poderia
ser uma declaração que o valor do cineasta estaria somente em suas condições de
produção, não na originalidade de seu olhar. Portanto, a operação realizada em
Encarnação do Demônio é semelhante a de Terra dos Mortos, de George
Romero, em que deixa-se, naturalmente, de lado a produção mais modesta (não poderia
ser diferente, a época é outra) e se afirma o gênio do diretor. Isso dá novo vigor
à potência do personagem Zé do Caixão e seu universo, assim como aconteceu com
Romero e seus zumbis. Encarnação
de Demônio é consciente de que nesses quarenta anos a figura do homem de cartola
ganhou variações e extrapolou os filmes, fazendo parte da cultura popular sob
outras variantes. O que talvez seja mais conhecido no Brasil nas últimas décadas
é a figura engraçada dos programas de TV e das aparições públicas que lança pragas
e aparece cercado de suas “pombagiras”, indo na contramão do personagem cinematográfico,
um cético. O outro é aquele que se fez como uma sombra e uma figura autônoma do
diretor José Mojica Marins, um duplo maligno, uma maldição, em que a grande vítima
era o próprio diretor. Ele seria o antagonista de seu criador em alguns de seus
filmes mais radicais como Delírios de um Anormal, Exorcismo Negro
e aquele que é talvez o maior filme do cinema brasileiro: Ritual dos Sádicos
(ou O Despertar da Besta). Este Zé do Caixão, dentro da própria diegese desses
filmes, é um personagem irreal, uma imagem, um pesadelo. Mas
o Zé do Caixão que deu fama ao diretor e origem às variações é o coveiro Josefel
Zanatas, o Zé do Caixão da trilogia À Meia Noite Levarei a Sua Alma, Esta
Noite Encarnarei em teu Cadáver e deste Encarnação do Demônio, que
é não é só o desfecho de uma trilogia, mas um acerto de contas. Uma das cenas
é um flashback do final de Esta Noite Encarnarei em teu Cadáver,
em que Zé do Caixão é perseguido pela população e acaba afundando em um pântano
bendizendo Deus e a cruz. Só que agora essa cena se desdobra, com Zé saindo do
pântano, matando o padre com a cruz e cegando um policial. Encarnação do Demônio
é ultrajante sem pés atrás e sem as soluções redentoras que os anteriores foram
obrigados a se sujeitar. Essa cena, que foi feita especialmente para Encarnação
do Demônio, soma-se a outras (originais) dos dois filmes anteriores, e trata
de criar uma ponte com eles – além de servir como uma introdução a quem ainda
não conhece a trajetória do Zé do Caixão. Mojica
Marins, com a colaboração do seu co-roteirista Dennison Ramalho, tratou de reconstruir
o personagem e sua mitologia para o mundo contemporâneo, o que é formidável, pois
dá vazão a uma configuração social e cultural atual com crianças de rua, o poder
paralelo dos policiais e a cultura sado-masoquista (não só do cinema). O filme
leva em conta, além do Zé do Caixão personagem cinematográfico, a figura pop que
se consolidou durante essas décadas, porque agora não é só mais um criminoso,
mas um ídolo, com um séquito de seguidores jovens. O anormal virou uma referência
nacional, um estimulador de taras, com direito a vassalos. Depois de anos preso,
em razão de seus assassinatos e torturas, sai da cadeia e retoma sua busca da
única verdade que acredita: a continuação do seu sangue por meio da mulher superior
capaz de gerar seu filho perfeito. Só que o mundo que ele encontra pode ser tão
ou mais perverso do que ele, e Zé identifica a saúde do mundo por intermédio do
estado das crianças, cheirando cola ou sendo assassinadas por policiais. O homem
comum, objeto de seu desprezo, continua covarde, supersticioso e servil.
Ritual
dos sádicos Todas essas qualidades
(novas e antigas) só teriam força sob uma forma que lhes desse sentido além do
choque que elas em si já representam. Apesar de todo o aparato, o que é realmente
escandaloso é a impossibilidade de Mojica ser convencional. Não é nem uma escolha,
mas uma condição. Esse universo não pode ser visto de modo brando, conciliado
ou maquiado pelo requinte da tecnologia e do dinheiro do qual o diretor dispôs
dessa vez. Como em todos os seus outros trabalhos, há uma brutalidade na decupagem,
em que os planos e a sua sucessão não têm exatamente um objetivo funcionalista
de dar prosseguimento à história ou construir uma situação de desenvolvimento
clara e convincente. Essa disfunção torna suas cenas às vezes muito cruas, como
o espancamento de Cristina Aché pelos policiais; a briga no bar da favela; ou
as seqüências da perseguição dos policiais e do parque de diversão. Se
as cenas de torturas e sangue, por exemplo, escapam ao fetichismo (que é a sensação
da série Jogos Mortais), é porque elas não são concebidas como uma câmara
de tortura para um espectador voyeur e sádico, mas como um delírio, um
pesadelo. O próprio personagem/diretor seria um maestro de cenas extremas, que
impressionam mais pela plasticidade e agressão, do que pela mera e simples crueldade.
Cenas como a mulher saindo da barriga do porco e a cena de sexo inundada por sangue,
ou mesmo o purgatório com Zé Celso Martinez, aproximam mais o diretor da parceria
Luis Buñuel e Salvador Dali do que desses recentes filmes de horror de tortura,
porque o horror vem pela via das imagens absurdas (e até do sarcástico), não da
mera representação da dor e da psicose. Essa integridade
do diretor não sobreviveria às concessões. Os efeitos especiais, por exemplo,
sejam os artesanais do passado ou os digitais de hoje, sempre obedeceram a diretrizes
bem específicas. Aqui eles não se fazem com uma impressão de realidade a partir
da tecnologia digital, mas (sobretudo aqueles que se utilizam do preto e branco)
aproveitam as suas possibilidades gráficas pra criar cenas irreais. Tudo isso
está a serviço do conceito, não de um padrão. Tanto que nem sempre interessa ao
diretor o que é explícito, como quando o policial atira em uma criança: não vemos
o corpo da criança, caído atrás do carro, mas somente o policial disparando a
arma. Para Mojica (e também para Zé do Caixão) não seria uma atitude correta mostrar
uma imagem dessas. Diferente de muito cineasta levado a sério, Zé do Caixão não
é vampiro. Encarnação
do Demônio finaliza um capítulo do cinema brasileiro. Um cinema que foi motivo
de vergonha, de incômodo, de aborrecimento e que lutou (e luta) para poder, efetivamente,
existir. Foram-se Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira, alguns dos
primeiros defensores do cinema de José Mojica Marins. Seu filme tem o falecido
Jece Valadão, Helena Ignez e Débora Muniz, representantes de três extratos diferentes
do cinema nacional. O senhor José Mojica Marins conseguiu o que queria, apesar
das estruturas e à revelia, talvez, de muita gente (hoje uma espécie de oposição
“branca”). Gente que sequer viu os filmes sabe de cor e salteado da história de
que “ele foi valorizado no exterior primeiro pra depois ser visto com seriedade
aqui no Brasil” – o que não é bem verdade, já que nas décadas de 60 e 70 ele foi
defendido por (pouca) gente de valor. Esse papo furado (falsamente) afirmativo
de que era trash e hoje é cult equivale a dizer que seu trabalho
é lixo, mas que hoje tem sua graça por ser pitoresco. Existem aqueles ainda, críticos
sobretudo, que tentam disfarçar o nojo “argumentando”, tão e somente, que os filmes
do Zé do Caixão não são do seu gosto ou que são supervalorizados por um clubinho.
O que representa uma mudança, porque depois de tanto tempo, o repudio explícito
se tornou dissimulação cínica. Pois graças a Mojica e seus
colaboradores pode-se acreditar, nem que seja por um instante, que nem sempre
estamos sujeitos a ciclos de fracasso. Em um ano que tivemos Cleópatra,
de Julio Bressane, Falsa Loura, de Carlos Reichenbach e Serras da Desordem,
de Andrea Tonacci, a última parte da trilogia de Zé do Caixão tem o mérito de
não ser só um retorno esperado há quatro décadas, mas um filme enorme. Encarnação
do Demônio lava a alma de cinqüenta anos de cinema brasileiro. Agosto
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|