O Engenho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Em busca da memória ameaçada

No encerramento de Cine Jornada (média de Octavio Bezerra), o documentarista Vladimir Carvalho, em tom de luto, reage ao enterro de uma geração (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirzsman). Pergunta de que valeram suas mortes? O questionamento em si mesmo é um tanto ortodoxo, dando a entender que, apesar de suas obras fundamentais, esses artistas “fracassaram” em seus projetos políticos, derrota prontamente estendida a toda geração de realizadores pós-anos 50. O prestígio internacional não foi suficiente para superarem o risco de esquecimento e invisibilidade de seus trabalhos.

Tratando-os como mártires, que sacrificaram a vida pelo cinema brasileiro e foram banidos por seus momentos históricos (os anos 80), Vladimir evidencia pelas palavras, mesmo em um filme de outro realizador, qual é sua busca no documentário: a busca do que se perdeu, dos rastros históricos, de uma memória ameaçada, sempre em forma de testemunhos, de testemunhas – método que vemos, com maior ou menor êxito, em Conterrâneos Velho de Guerra e Barra 68. Haveria nessa proposta um tanto da motivação dos documentários do israelense Amos Gitai, que, como ele próprio definiu, tem uma relação de arqueologia com os sinais de outros momentos de seu país? Em alguma medida pelo menos.

Não é outra a disposição de Carvalho em O Engenho de Zé Lins, se não a da investigação do passado, de sua reorganização e de seu entendimento a partir dos testemunhos de quem o viveu. Como se percebe logo nos primeiros minutos, quando, em uma escola na Paraiba chamada José Lins do Rego, pergunta-se aos alunos se leram alguma linha do autor de Fogo Morto e Pedra Bonita, temos a constatação de uma esclerose cultural. Essa passagem é imediatamente posterior a imagens de imortais da Academia Brasileira de Letras, em uma celebração do centenário do escritor, quando frases/slogans de elogios e consagração do homenageado ocupam a tela em forma de letreiros, a nos lembrar de frases/slogans presentes em cartazes de filmes. Promocional? Sim. Promove-se Zé Lins em um momento (o oficial/institucional), para depois detectar seu desaparecimento (ao menos de nosso caldo cultural). Há uma dialética entre essas duas seqüências, e esse esquecimento verificado entre os alunos é amplificado por Ariano Suassuna, que aponta o descaso dos críticos com a obra dele (Zé Lins), não sem um tom de injustiça histórica na reação a essa promoção do apagamento.

Portanto, o que se busca, sempre, é a preservação. Vladimir Carvalho já nos deu provas, com mais ou menos êxito, de que trata as histórias, a História e a memória como organismo vivo, não como peças de um museu empoeirado. O Zé Lins evocado pelos entrevistados parece estar logo ali, à nossa frente, comportando-se exatamente como seus próximos o descrevem. Temos uma sucessão de entrevistas com conhecidos e amigos do escritor, todas concentradas em um biografismo anedótico, em algumas suposições psicologizantes, que tanto narram situações insólitas do performático protagonista ausente como se apoiam em momentos traumáticos de sua vida para explicar a personalidade. Surgem desses depoimentos uma verdadeira aula sobre quem foi Zé Lins, sobre sua relação quase de idolatria com Gilberto Freire (que dizia tê-lo formatado), sobre seu temperamento impulsivo e sobre sua angústia, com a revelação de passagens inusitadas de sua trajetória – as mais espirituosas geradas por sua paixão cega pelo Flamengo, que o levou a queimar uma camisa de Jair da Rosa Pinto, quando, ao abraçá-lo no vestiário após uma derrota do rubro-negro, percebeu como estava seco o uniforme do craque.

Propondo um diálogo na montagem entre as entrevistas, ricas imagens de arquivo, o único registro sonoro do escritor (uma entrevista em Lisboa em 1956), fragmentos de narração de Othon Bastos (como a voz encenada de Zé Lins) e fotografias de grande efeito plástico/dramático, Vladimir Carvalho foge do mero entrevistismo e, quando o utiliza, não o faz de uma maneira burocrática e meramente funcional. Uma entrevista com Suassuna, por exemplo, é interrompida pela som de um avião. Imagem da aeronave voando. Voltamos para as entrevistas, mas, nesse retorno, Suassuna conta um caso, ocorrido em um teatro, que nada tem a ver com Zé Lins. Ficamos a ouvir a saborosa narratividade verbal do carismático dramaturgo, que se desvia do filme e cria imagens cinematográficas com as palavras, abrindo um link dentro do documentário para fazer seu próprio filme, generosamente aceito por Carvalho.

Imagens produzidas por palavras, aliás, são constantes em O Engenho de Zé Lins. Em sintonia com o rigoroso romancista do qual falam, os entrevistados (sobretudo Suassuna e Tiago de Melo) bailam com as palavras e flanam na oratória. Eles tecem suas colocações de improviso como se estivessem arquitetando uma obra literária, cultivando o tempo das frases, as inflexões da voz, sempre em busca do melhor efeito narrativo de seus testemunhos. É impagável o relato de Tiago de Melo sobre uma partida entre Flamengo e Racing no Maracanã, presenciada por Zé Lins, no qual o poeta faz as pausas certeiras, senhor do suspense, ilustrado segundo depois por imagens do jogo ao qual se refere. Montagem e retórica verbal, nesse momento específico, resultam em uma lua de mel. Da linguagem, no caso. Essa lua de mel não é onipresente em O Evangelho de Zé Lins, seja por conta do início encenado e narrado de maneira um tanto frágil, seja por conta de alguns testemunhos menos preocupados com a oratória – mas, de forma geral, temos um projeto de audiovisual empenhado em construir memória, sem esquecer de que cinema é articulação de informações visuais e sonoras. Bom retorno, Vladimir.  

Novembro de 2006

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta