edição especial curtas brasileiros
2009 Em três movimentos por
Eduardo Valente
Ensaio de Cinema, de Allan
Ribeiro (Rio de Janeiro, 2009); e 24º Domingo do Tempo Comum, de Daniel Lentini
(Rio de Janeiro, 2010)
Nos
sete primeiros de seus quinze minutos de duração, Ensaio de Cinema nos
coloca num estado de apreensão bastante específico, que diz respeito aos filmes
que constroem um sentimento de intimidade extrema entre a câmera e seus personagens,
deles entre si e com o espaço que habitam. Allan Ribeiro nos faz lembrar ali de
alguns belos momentos de seu curta anterior, Depois das Nove, repetindo
aqui a sua capacidade de criar alguns dos mais singelamente verdadeiros “planos
de cozinha” (para falar de uma categoria que remete diretamente à intimidade).
Ao mesmo tempo que reconhecemos até ali um domínio bem firme do plano e da montagem,
que nunca se rende ao fetiche do plano longo como maneira única de habitar um
espaço e nos fazer sentir sua duração, sentimos um certo incômodo curioso: será
mais um filme que se afirma a partir dos pequenos momentos aparentemente sem maior
significado, buscando construir exatamente por essa aparente insignificância a
sua grandeza? É quando uma tela preta faz com que nos demos
conta que estávamos sendo “enganados” o tempo todo, talvez exatamente pela necessidade
de categorizar e entender um filme que sentimos desde o começo dele. Pois muito
mais do que uma afirmação da banalidade da pequena vida, em Ensaio de Cinema
aquele começo é uma introdução que se esmera, com um trabalho de câmera e luz
ao mesmo tempo discreto e absolutamente cuidado do fotógrafo Pedro
Urano (notada especificamente no plano e contraplano extremamente estudados que
levam justamente a esta tela preta), em recriar justamente um ritual da banalidade
e da intimidade – ritual este que funciona como nada mais do que a introdução
para uma performance que toma o filme de sopetão a partir do seu oitavo minuto
e que não tem nada, nada mesmo de naturalista. Pelo contrário: a performance encenada
pelos dois atores/artistas de Ensaio de Cinema é um prodígio de construção
audiovisual (onde o elemento sonoro também tem grande importância), um balé entre
câmera, personagens e espaço que reconstitui seguidamente a cena (ora se irmanando
com o olhar daquele que é o encenador dentro da cena, ora assumindo o ponto de
vista oposto ao dele, ora se posicionando por si mesma). Um plano belíssimo que
resiste de novo, aliás, ao fetiche fácil – aqui, o do plano-sequência que quer
ser admirado como tal, incorporando dois cortes ao que simula o sentimento de
uma performance contínua (simular é sempre o termo mais essencial do filme). Pensamos,
assim, termos entendido todo o jogo de Ensaio de Cinema: ao invés de Depois
das Nove, o filme novo de Allan Ribeiro repete em algum grau o efeito buscado
em seu outro grande filme, O Brilho dos Meus Olhos, com suas duas metades
que reconfiguram-se mutuamente, fazendo a realidade e a arte se misturarem como
uma só. Mas é aí que seu novo filme dá um passo adiante, e depois do que parece
um crédito final que assinaria simultaneamente o filme na tela e a performance
no áudio (“Santa Teresa, setembro de 2009”), voltamos ao efeito inicial de intimidade
para um último plano, agora já olhando para tudo aquilo com olhos outros. Os dois
artistas sentados de novo conversam, reconfiguram de novo o que vimos, repensam
sua performance, dizem como ela pode mudar e ser melhorada (pois se o cinema eterniza,
o teatro e a dança se refazem a cada dia). Já não se pode mais falar em banalidade,
pois o efeito da construção desta foi quebrada, então só se pensa na construção.
E Ensaio de Cinema se torna grande mesmo ao nos quebrar as pernas mais
uma vez, dos entendimentos simples e imediatos, ao restituir a capacidade do cinema
de maravilhar e surpreender mesmo e principalmente no banal, mas também na força
de sua imposição ao mundo. Frente a câmera, nada é banal, afinal. *
* * Esse
mesmo jogo de reconfiguração em três partes está presente também, ainda que de
maneira e com fins bem diferentes, em 24º Domingo do Tempo Comum, documentário
de Daniel Lentini. Assim como no filme de Allan Ribeiro, temos aqui três sequências
que funcionam de maneiras distintas na medida em que vão se sucedendo e (re)criando
expectativas sobre o que vemos. No começo, de novo, o ritual da banalidade: um
homem que se prepara para sair de casa, e que aos poucos vai nos dando as pistas
de sua atividade. É um padre que, logo entendemos,
se dirige para a missa. A câmera de Lentini, e de seu fotógrafo João Atala (nome,
assim como o de Urano, que já assina alguns trabalhos bem firmes no cinema brasileiro,
apesar da pouca idade), não parece se posicionar frente às imagens, recriando
uma intimidade que não interfere com a realidade.
Acreditamos,
portanto, ver um filme sobre um padre e, quiçá, seu ofício. O caminho de carro
entre sua casa e a igreja é longo, e filmado como tal. Quando ele chega ao destino,
logo acompanhamos alguns momentos do ritual (de novo, como no filme de Allan Ribeiro,
a performance surge como ponto central que altera o jogo), onde os fiéis parecem
chamar mais a atenção da câmera do que o padre. Já estamos quase com dez minutos
de duração do filme e tateamos ainda em busca do sentido maior que dá ordem ao
filme: a vida de um padre? A vida daquele padre especificamente? Sua relação com
os fiéis e com o ritual da missa? É
quando a câmera toma a decisão, radical como era a ponta preta em Ensaio de
Cinema, de abandonar uma aparente posição imparcial, típica do chamado cinema
direto, e se gruda em uma personagem, uma fiel que até então parecia apenas mais
uma em meio a um grupo, mas que se destaca cada vez mais por um olhar que parece
atrair, sempre e cada vez mais, a câmera para ela. A fiel sai da igreja e começa
a caminhar – e assim vamos nós atrás dela. A câmera agora lembra uma mistura de
alguns dos planos dos irmãos Dardenne com o Gus Van Sant de Last Days:
segue a personagem de trás com enorme destreza enquanto ela se distancia mais
e mais do ambiente da igreja, num trajeto que aos poucos vai se tornando exasperante
tanto pela distância enorme como pelo ambiente cada vez mais ermo. A personagem
finalmente chega a um portão, e a câmera parece hesitar, mas logo decide: entrará
com ela, e toma outra postura ao poucos, voltando a um ritmo lento de um cotidiano
isolado. A interação entre câmera e personagem é um mistério, ao mesmo tempo escondida
e consentida. E o filme termina, isolado com aquela mulher. Como
em Ensaio de Cinema, cada uma destas reconfigurações, destes movimentos
que apresenta 24º Domingo do Tempo Comum, são como respirações profundas
que nós pegamos de novo, se libertando de um código e se abrindo para um novo.
Sendo que aqui só ao final percebemos mesmo que o filme que vimos é um filme sobre
a vivência da fé, sempre profundamente pessoal e solitária – além de, curiosamente
para algo que se constata a partir de um filme, infilmável. Vemos um homem que
arruma banalmente seus objetos para o seu trabalho, no qual se põe em contato
com algo sagrado; vemos uma mulher que vive isolada do mundo em meio à natureza,
mas encontra motivo para todo domingo atravessar tamanha distância para se conectar
a algo sagrado. Entre eles, assim como entre seus dois trajetos físicos no filme,
existe o ritual, o encontro com o que para eles é o sagrado. Nós assistimos a
isso tudo, mas não podemos nos conectar com nada da mesma maneira que eles. Esse
sentimento do sagrado, que é o que justifica seus atos (e o filme), a ele não
temos acesso, pois uma câmera não pode filmá-lo. Mas pode, sim, nos mostrar que
ele existe, nem que o seja sempre através do que é humano – e, portanto, matéria. Março
de 2010
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