Volta para parte 3 da entrevista

Ruy e Junior falam sobre a paixão como o determinante na aproximação da Contracampo com o cinema, das verdades e mentiras na História do Cinema e do futuro da revista.

Cinética – De que forma vocês acham que uma revista de crítica de cinema precisa atuar diferentemente entre um material contemporâneo, que surge e tem a reflexão sobre ele realizado no mesmo momento histórico, de um material “clássico”, ou que já faz parte da história do cinema?

Ruy – Na verdade, tem uma maneira muito simples de responder, por mais que não dê conta de todas as dificuldades que isso impõe: o que move é a paixão. E a paixão não é por filmes recentes ou antigos, mas por algo que tem nestes filmes. Naturalmente, a forma como abordar é outra, mas sempre é. Por exemplo, estamos preparando uma edição que vai lidar com Werner Herzog e Seijun Suzuki, e não pode ter duas coisas mais diferentes, e claro que a metodologia para tratar de um e outro precisa ser distinta. Um faz filmes desde o final da década de 60, o outro faz desde os anos 50, a década mais famosa é a dos anos 60, mas ele pára dez anos de filmar... Ambos tem uma progressão de cinema totalmente diferente, estilo, temas, dispositivos cênicos e estratégicos... Então, na verdade, é a obra ou uma interpretação nossa dela que indica como a gente vai seguir os traços de um realizador ou outro.

Eu acho que é natural que a contemporaneidade apareça como algo interessante, porque tem muita gente fazendo coisas que nos interessam pelo mundo, e todo ano vai ter temas para que tratemos. Ao mesmo tempo, as pautas “históricas” elas são necessárias pelo mesmo motivo, o do entusiasmo enorme. Agora, como uma revista de cinema que tem uma noção do passado da atividade, das gerações que a precederam, lógico que não faz sentido a gente começar hoje a falar de Luchino Visconti, porque todo mundo já falou dele. A menos que você tenha algo diferente para falar, não faz sentido. “O gênio de Sergio Leone”, “A Trilogia do Tédio de Michelangelo Antonioni”, “A trilogia da terra de Glauber”, Limite,  quem não falou disso? Tem filmes que já foram esgotados, só faz sentido falar deles se for para adicionar uma página sobre estes filmes. Mas ao mesmo tempo a gente já fez uma pauta Glauber Rocha e falamos de cineastas que foram mal vistos ou que nem foram vistos, e nunca tiveram um trabalho mais denso de análise e pesquisa, como o John Carpenter, que é um diretor cuja visão que se tem dele nunca é uma visão de conjunto vigoroso, e nós fomos tentar fazer – John Landis a mesma coisa. No caso do Chang Cheh, nunca ninguém pegou a carreira dele e foi olhar para ela de cabo a rabo, para tentar identificar que tipos de filmes ele fez, qual o estilo recorrente. Se a gente fizer uma pauta John Ford ou Ernst Lubitsch, claro que não vai poder ser com o mesmo approach que a gente faria uma pauta Abel Ferrara ou Cronenberg ou David Lynch. Ou mesmo, falar sobre Hong Sang-soo, Apichatpong Weerasethakul. Um falta você criar uma fortuna crítica, enquanto se a gente falar de John Ford, a gente precisa se referir ao que já existe de fortuna crítica sobre ele. Mas, em todos os casos, a paixão é o determinante.

Luiz Carlos – Eu acho que a gente começou o século XXI parando de contar a história do cinema. Ela foi muito contada, e de formas diferentes. A partir dos anos 60 você vai ter diferentes maneiras, metodologias, para contar o que supostamente é uma mesma história – porque é a história de um mesmo cinema, de uma mesma arte. Mas eu acho que a gente agora pára um pouco de contar essa história e vai se alimentar dela – e, o que é o mais interessante, se assustando com ela. Se assustando porque, por mais que tenham contado, sobrou muita coisa que ninguém conhecia ainda. Uma das conseqüências mais imediatas disso é que você começa a preencher as lacunas nessa história, a falar de quem, dentro do turbilhão, dos movimentos de conjunto, dos grandes acontecimentos, por algum motivo não havia sido devidamente destacado. É como se a gente estivesse fazendo a micro-história do cinema. Depois que você fez as grandes narrativas, você começa a  fazer a micro-história, e aí você começa a descobrir o Chang Cheh, a falar do cineasta dos anos 80 que não parecia compor uma parte relevante dessa história. E uma outra conseqüência é que, se por um lado parece forçação de barra ou chover no molhado você estudar a mise-en-scène do Otto Preminger, uma vez que toda uma crítica francesa macmahonista dos anos 60 fez isso, e continuaria depois fazendo com uma propriedade de estudo de estilo absurda – com uma paixão absoluta por aquela obra, no calor do momento; por outro lado é a hora, como fez o Jean Douchet, de escrever um texto inteiro só sobre o primeiro plano de Anatomia de um crime. Se, por um lado parece desnecessário você dedicar uma pauta à trilogia do tédio do Antonioni, mais do que nunca é a hora de você pegar e estudar só a seqüência do eclipse em O Eclipse, e capturar fotogramas para colocar junto com o seu texto. Escrever um texto inteiro só sobre o falso raccord do Fritz Lang em Desejo Humano. Naturalmente, isso com o passar dos anos vai pedir uma nova metodologia. O Jacques Rancière lançou esta pedra quando ele escreveu que o Godard já tinha proposto isso no Histoire(s) du Cinema, e que daqui por diante a forma correta de escrever sobre o cinema seria uma fábula a partir do que o cinema já mostrou pra gente. Ou seja, você só consegue construir agora estando dentro do cinema, você não consegue mais construir de fora.

Ruy – E ao mesmo tempo, eu acho que ao experimentar os filmes a gente descobre que a história do cinema que é contada é inteiramente ficcional – e eu não digo isso no sentido do privilégio do cinema ter sido o cinema de ficção. Porque é uma história completamente inventada pelas “modas” dos período. Independente do mérito dos filmes, porque eu vou colocar como vilão um filme que acho um belo filme, sob qualquer aspecto se a gente pegar dois filmes de 1973, Caminhos perigosos de Martin Scorsese e A mamãe e a puta, do Jean Eustache, é claro que o filme do Eustache representa uma radicalidade no modo de relação com o cinema que é muito mais diferencial em relação ao que é um filme convencional do que o filme do Scorsese – e, entretanto, o filme do Scorsese virou um marco porque “iniciou um estilo que viria a ser o estilo do Scorsese que influenciou uma série de diretores, que a gente está acostumado a chamar de Nova Hollywood, onde havia grande liberdade porque houve um hiato entre a década de 60 e o final da década de 70 em que os estúdios não sabiam o que fazer e delegavam poderes grandes a determinados diretores que pareciam estar levando a história do cinema a um outro momento...” É claro que, neste sentido, o Scorsese tem todo seu papel na história do cinema. Mas, cadê o Jean Eustache? Cadê a Chantal Akerman com Jeanne Delman, 23 Quai du Commerce e suas proposições radicais do que o cinema devia mostrar? Junto com o filme do Eustache, são dois filmes corriqueiros de mostrar o cotidiano, o Eustache de uma forma mais dândi e íntima, a Chantal Akerman completamente analítica e distanciada. Então fica o questionamento, e eu acho que muito do que é uma cinefilia hoje é perceber os buracos que há na “história oficial do cinema” e tentar entender. Quando eu vi pela primeira vez uma retrospectiva do Jean Rouch eu comecei a entender de onde vinham uma série de coisas da nouvelle vague, mas ninguém faz esse link, apesar de ser a coisa mais óbvia, até porque o Godard e o Rohmer escreveram sobre o Jean Rouch – todo mundo ficou entusiasmado com os filmes quando eles passaram. E porque não fazem o link? Porque há os imbecis que acham que “o Jean Rouch é documentário, a nouvelle vague é ficção”, e aí o documentário é uma seara e a ficção é outra, e constrói-se toda uma teoria do documentário como se ele crescesse separado do resto do cinema, etc.

Cinética – Para terminar, eu queria saber quais são os projetos da Contracampo hoje, depois de oito anos. Vocês falaram que acham que já atingiram o público que tinham que atingir no Brasil, então eu pergunto: como pode crescer uma revista escrita numa língua periférica no mundo, mesmo em tempos de internet, visto que vocês “dialogam” com uma tradição e uma contemporaneidade da crítica internacional, mas não podem ser lidos por eles?

Ruy – Essa é uma das preocupações maiores da Contracampo hoje. A gente é muito pouco “associativo”, nem os editores nem quase ninguém da revista são afiliados a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – sendo críticos e do Rio de Janeiro. Um pouco até para marcar ponto, marcar posição diferente de crítica em relação a um formato que consideramos desgastado da crítica cinematográfica. E claro que uma das facilidades que este convívio traria seria uma aproximação de um circuito internacional, conhecer críticos da Fipresci (Federação Internacional de Críticos), ir a um festival estrangeiro eventualmente e travar um contato maior com esses críticos. É algo que a gente vê como um revés natural de uma posição que decidimos tomar. Agora, ao mesmo tempo, de um ponto de vista de um contato pessoal, o problema nem se apresenta tanto, porque mal ou bem eu estou em contato com uma série de figuras que admiro, sobretudo da crítica americana (apesar das minhas influências serem bem mais notadamente da crítica francesa), em listas de discussão internacionais, e o próprio Junior trava contato por freqüentar e comentar em blogs de críticos franceses. Mas, naturalmente, isso é algo pessoal, e não da revista. E é curioso você ter perguntado isso, porque esta é justamente uma das propostas, já que a Contracampo já se cristalizou dentro do cenário brasileiro a nosso ver, e por isso a gente precisa partir para outras possibilidades. Aqui a gente já consolidou uma freqüência e não quer mudar para ampliar o nosso público, embora a gente acha que este público até pode ser ampliado porque a Contracampo é uma revista ainda pouco conhecida, podia ter uma divulgação maior – mas a gente não se propõe a fazer textos mais simples para ser mais acessível. Por isso, pensamos sim em fazer associações, ter uma interface internacional, num primeiro momento mediante uma comunidade cinematográfica mais clara (ou seja, não só críticos, mas críticos, pesquisadores e cinéfilos interessados imediatamente). Resta 2006 e 2007 para ver se seremos bem sucedidos nesta proposta.


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