Entre
os Muros da Escola (Entre les murs), de Laurent Cantet (França, 2008)
por Cléber Eduardo A
potência da imagem da impotência
Duas características
dominantes e poderosas de Entre os Muros da Escola, do francês Laurent
Cantet, acentuam a “alta” de certo padrão estético do cinema, legitimado como
artístico com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. A primeira característica
vinculada a este padrão em alta desde os anos 90 é seu efeito de realidade
e autenticidade que, apesar de construído com uma variável de angulações e de
distâncias focais, por meio de imagens-recortes colocadas em relação, apresenta
seres e ambientes como se eles estivessem à nossa frente, ao vivo, com todas as
evidências da construção cinematográfica apagadas pela sensação de estarmos fora
da ficção. Pode parecer contraditório, como sempre pode ter parecido no cinema
e nas reivindicações de aproximação entre realidade e ficção, mas o mérito de
certas ficções, nos paradigmas de avaliação de muitos críticos e espectadores,
é nem parecer uma ficção. Há quem chame esses filmes de ficção documental, no
sentido de acesso direto à realidade, sem tanta mediação e estilização. A chave
não está na transparência da montagem, mas na sintonia de
atores com seus espaços e com seus gestos, palavras, roupas e maneiras
de se colocarem uns em relação aos outros.
Não se
pense, porém, em visão imparcial. Entre os Muros da Escola,
é, para bom observador, todo mediado, todo estilizado, mas constrói o efeito de
não-mediação. Constrói a impressão de captura de situações que poderiam acontecer
(ou acontecem) sem a câmera, exatamente daquele jeito (ou quase), e esse seria
um dos seus principais méritos artísticos segundo seus principais defensores.
a justa mimese. Parece um contra-senso ver valor artístico na aparente ausência
do artista ao encenar a ficção, mas essa aparente ausência do artista é ela também
uma construção (e não uma ausência). Nenhum contra-senso, portanto. A questão
é superar a mimese justa e lidar com a potência interna da ficção disposta a esconder
suas operações de organização do mundo, sua transformação de caos em cosmos, para
nos colocar com mais poder e força no mundo mostrado, para colocar esse
mundo mostrado como presença no extra-quadro. O extraquadro da sala de
aula é a sociedade francesa, que, de forma indireta, faz parte do campo
cinematográfico do filme. Podemos pensar esse realismo
como motivo anterior a seus códigos de realização, como uma necessidade de substituição
das experiências por suas mediações, quase como uma espécie de boneca inflável
para os olhares que, em vez de imagens, assimila a mediação como se fosse a própria
experiência não estilizada. Há uma vertente da crítica realista que chega às raias
da metafísica. Em
nome de uma celebração da vida e do real “captados” pela câmera, solapam o materialismo
e a matéria, atrás de momentos de epifania proporcionados pela vida diante da
lente – e não pela vida gerada na tela por uma série de relações lógicas e intuitivas
do processo de realização. Os filmes com grande apelo de realidade podem até ser
experimentados como alargamento do mundo visível e como estímulo à consciência,
à indignação e à solidariedade universalizante, criando zonas de compartilhamento
de afeto para além de abismos pessoais e fronteiras nacionais. No entanto,
é preciso questionar se essa operação não traz sobretudo um efeito de “carrinho
de simba safári”, no qual nos aproximamos de zonas de risco e de conflito sem
sermos afetados de fato por esses riscos e conflitos, com o conforto de que sobreviveremos
ao desconforto e, ao sobreviver, obtemos uma vitória pessoal por não fecharmos
olhos ao mundo, e por sermos capazes de nos emocionar e de nos solidarizar com
esse mundo. O realismo sempre traz algo de resignação em suas denúncias da vida,
mesmo quando não se denuncia algo concreto e sim o mundo como um estado geral.
O que é, faz algum tempo, a modalidade vigente. A segunda
característica dominante e poderosa que citamos no começo é a condensação na sala
de aula de uma tensão generalizada entre alunos, facilmente encaráveis como grupo
homogêneo por pontos em comum em suas condições na sociedade francesa. Se isso
reflete tensões dessa sociedade, não se refere a esse universo de modo mais amplo,
preferindo introjetá-lo nos limites concretos de uma escola. Por conta de diferenças
de origem, em dados momentos de confronto verbal entre os alunos, eles reproduzem
a retórica colonialista, estabelecendo diferenciações nacionais e culturais hierárquicas,
embora
estejam em um mesmo contexto social de filhos de imigrantes ou imigrantes eles
mesmos – algo que, quando se torna mais visível quem detém o poder de fato, e
quem é punível (e quem não), torna-se mais claro e leva-os a uma união circunstancial.A
relação entre esse efeito de realidade conseguido com o efeito de apagamento da
intervenção ficcional e a condensação de tensões dessa realidade em uma sala de
aula multicultural, os tais pontos de maior força do filme, resulta em uma observação
sobre a perda do controle sobre as condutas de controle, com imagens nas quais
os professores reclamam da perda de suas autoridades ou reagem a essa perda com
autoritarismo. É nessa organização de embate de forças internas da classe e dos
alunos com a instituição escolar que poderemos localizar a procura da transformação
do caos em cosmos com a disposição de se organizar como cosmos o caos sem bulas.
Nenhum cosmos com leis e lógicas sólidas é possível em Entre os Muros da Escola.
A escola, reflexo ou não da sociedade mais ampla, está perdida. Desorientada,
sem a palavra certa. E com um problema indesejável, que tira professores do sério:
ensinar quem e para que? Essas
imagens constatam essa perda da autoridade em seu encadeamento, assim como nos
mostra a estratégia pedagógica-conciliatória de um professor de francês (Marin,
o protagonista), que estimula os alunos a escreverem a partir de seus sentimentos,
de modo a melhor acessá-los ou melhor controlá-los pela informação sobre suas
interioridades expressas em palavras. Há fortes indicações de um sentimento de
impotência e de desorientação entre os professores, assim como um desejo de recusa
a qualquer autoridade entre os alunos. Os netos dos colonizados asiáticos e africanos
não dizem “sim, senhor”. As tensões estão abertas, sem conciliações, ou com conciliações
temporárias. A defesa da língua francesa por parte do professor não encontra ecos
entre os alunos simplesmente porque estes têm seu próprio modo de expressão verbal
e acham antiquada a língua francesa correta. É um problema cultural que se coloca
diante da escola francesa, da língua francesa e do professor de francês, bem maior
que o problema social imediato. A ficção com aparência de
não ficção, portanto, é organizada como ficção significante, não como registro
da vida, mas sem perder a força de vida de muitos de seus momentos. Estamos diante
de um filme que age com a consciência de que o realismo é uma construção
da linguagem, não um direcionamento da lente para certas presenças,
mas sem perder o efeito de presença aparentemente sem construção.
Talvez seja essa a principal opção expressiva de Entre os Muros da Escola,
que, por meio de uma procura por pessoas de carne e osso, com sangue a escorrer
nas veias e um passado histórico a formatar seus presentes, encontra personagens
com notável carga de existência nos momentos a nós mostrados. Carga de existência
sem dados e imagens de vida pessoal, de interioridade, de situações para além
dos lugares em público de cada ser em quadro. O privado, embora seja caminho de
acesso ao entendimento da atitude pública, é recusado. Pelo professor, questionado
por sua suposta homossexualidade, e por um aluno, resistente a fazer sua auto-ficção.
Só importa quem eles são em público. A
energia interna não tem a ver com fidelidade a algo fora dela. Essa energia está
nas presenças dos personagens, nessa capacidade da narrativa de nos colocar em
contato próximo com eles e com seus modos de estarem ali, com suas personalidades,
vozes e posturas, sem nos dar nada deles fora daquele ambiente, sem nos mostrar
nada de suas vidas em casas e em seus bairros, mas também sem desconectá-los de
um meio social complexo, que está em suas atitudes e em suas palavras. Portanto,
em suas passagens menos fortes e em seus momentos de maior presença, Entre
os Muros da Escola precisa, do ponto de vista crítico e estético, ser visto
pela construção de seu olhar e, se esse olhar parece empenhado em não se colocar
a favor ou contra ninguém, ele também é um olhar cruel ao expor a complexidade
por conta da qual não toma partidos. É como se a narração dramática
do filme só visse a incapacidade de ver saídas. Seu ponto forte, portanto,
está em sua franqueza. Não se trata de uma política da potência, mas uma potência
de uma imagem da impotência. Se a rebeldia escolar era celebrada
por Jean Vigo, em Zero de Conduta (1933); e por François Truffaut, em Os
Incompreendidos (1959), para citarmos dois filmes de diferentes momentos do
cinema francês e da França, aquela era uma rebeldia de meninos brancos contra
o tom opressor do sistema escolar-educacional. Desobedecer era uma saída. Na França
do século XXI, com a qual lida Cantet, não há mais carga libertaria na desobediência.
Em vez de transgressão libertária, que vê a energia potente do caos contra os
cosmos, agora nos deparamos com a transgressão caótica, que aproveita a incapacidade
de escola e professores de propor um cosmos. Cantet nos mostra assim que, na arte,
é possível trabalhar com energia, mesmo quando se mostra a perda da energia diante
de determinadas circunstâncias. Março de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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