olho no olho
A superfície de um lago - bate-papo
com Cao Guimarães
por Cezar Migliorin, editado por Felipe
Bragança
A conversa que se segue aconteceu no ano de 2005
e tinha quase três horas de duração em fitas cassete. O que temos
aqui é um resumo, um apanhado das idéias e das histórias desse
que é um dos mais prolixos realizadores do audiovisual brasileiro
hoje. Vamos a ele:
Cezar Migliorin: Você é fotógrafo, documentarista, artista
plástico, portanto, independente desses rótulos, a forma como
teu trabalho surge é muito diversa não?
Cao Guimarães: Acho que sim. Eu inventei
uma metáfora pra falar do meu trabalho. É a idéia da realidade
como a superfície de um lago... A questão é como se posicionar,
então, diante dessa realidade: Ou você fica no barranco contemplando
a realidade do lago (que é como eu vejo esses meus pequenos filmes
contemplativos), ou você joga uma peça no lago pra que ele reverbere
e volte ao normal de uma forma diferente (que é a idéia dos trabalhos
mais propositivos como Rua de mão dupla), ou, por fim,
você se joga dentro do lago, entra nele (que é como eu vejo meus
trabalhos mais imersivos, os “documentários” onde você entra dentro
de um universo, vai viver com um eremita lá um tempo e se propõe
a investigar aquele universo). Mas às vezes o acaso é quem domina,
como aconteceu no Da Janela do Meu quarto, por exemplo:
eu estava com um filme Super-8 e uma câmera na mão, indo embora
de uma aula que eu dei no Pará, estava chovendo muito, e, de repente,
chegam aqueles meninos e começam aquela dança, aqueles negócios,
aquela beleza. Na hora, alguma coisa detonou em mim, eu peguei
a câmera e os 3 minutos de Super-8 que eu tinha e comecei a rodar.
Acho que foram lembranças de quando eu era pequeno e eu pensava:
só tenho 3 minutos, até onde eles vão com isso? Claro que eu tinha
uma idéia, já na hora, de botar em slow motion depois né,
para esticar um pouco tempo. Resolvi filmar até o rolo acabar
e dei sorte porque bem nos momentos finais dos 3 minutos, a menina
sai correndo e menino sai correndo atrás dela... Como um final.
Cezar: E aí, quando você foi editar isso
já estava pronto na sua cabeça? Você reproduziu o que você estava
imaginando ali na hora ou algo novo apareceu? Como foi essa espera
para rever o material revelado?
Cao: Fiquei mesmo com uma expectativa muito
grande sobre o material. Esse negócio de Super-8 é bom porque
você manda para Kodak e espera, espera... Da Janela do meu quarto
eu esperei por 2 ou 3 meses antes de revelar e ver. Aí o material
chegou e eu comecei a mexer um pouco ali, arrumar ali. Algo que
eu faço: edito em casa mesmo, uma coisa que eu chamo de cinema
de cozinha, né? Feito em casa, com calma. Eu que telecinei. Sem
aquela correria de alugar ilha de edição ou ter que lidar com
editor estressado.
Cezar: O fim do sem fim foi seu
primeiro trabalho a entrar no circuito cinematográfico do “documentário”,
né? Apesar desse rótulo ser desnecessário, o filme passou a ser
encarado assim. Esse foi um circuito que te interessou desde o
começo? Você se pensava como um “documentarista”?
Cao: Eu nunca tinha feito documentário,
nem sabia, nem acompanhava, nem pensava em documentário na vida,
nem conhecia documentário. Fui fazer um documentário, tinha claro
alguma coisa intuitiva assim. Eu gostei de ter feito esse circuito,
foi bom pra mim porque começou a abrir um universo diferente.
Eu tava muito dentro das artes plásticas, já tinha tentado fazer
ficção e ficado meio traumatizado com aquela coisa de grande produção,
etc. Achei que um documentário tinha mais a ver com a forma como
eu enxergo todo o meu trabalho que é pensar na realidade como
a mais forte das ficções. É uma forma também de fazer um audiovisual
mais barato, mais autônomo, híbrido entre o cinema e as artes
plásticas. Quando eu encontrei o trabalho do grupo O Grivo, eu
percebi que tinha a imagem e o som para o que eu queria – uma
identificação maravilhosa: eu entendo o que eles querem, eles
entendem o que eu quero. E aí não importa se vou fazer ficção
ou documentário...
Cezar: Mas você considera que continua
fazendo artes plásticas nesse trabalho?
Cao: Não sei. O fim do sem fim passou
em museus de arte contemporânea também. Afinal de contas, o que
é que é artes plásticas, né? Acho que eu estou no meio do caminho,
embora meus amigos e parceiros ainda sejam muito mais das artes
plásticas, dos anos 90 até hoje, aliás.
Cezar: E você se interessa por essa trajetória
em termos de público? Isso era uma questão pra você? Encontrar
um público maior através desse circuito de cinema...
Cao: Não chamaria de preocupação, não –
nunca foi. Claro que existe o desejo de lançar meu filme em várias
capitais, pelo menos sete no país todo, porque Belo Horizonte
ainda é muito uma província, sabe? Estamos tentando conseguir
R$ 350.000,00 para poder lançar o Alma do Osso em vários
estados, porque apesar de ter ganho prêmios importantes em festivais
importantes o filme circulou pouco. Mas eu sei que o circuito
é difícil... Queria que ficasse, sei lá, duas semanas pelo menos.
Mas sei que é difícil conseguir isso com um documentário em que
a primeira fala se dá aos 50 minutos... Mas é uma vontade que
eu tenho, sim.
Cezar: Sobre Belo Horizonte ser uma província
ainda hoje... Queria que você falasse de como você enxerga a atual
produção de vídeo e videoarte em Minas Gerais, que tem se tornado
cada vez mais forte, né? Isso é ou já foi uma influência importante
para você, no seu trabalho?
Cao: No geral, a produção de vídeo tem
sido realmente algo forte em Minas, talvez por uma questão óbvia
que é a escassez de recursos. De um lado tem aquela galera que
eu sinto mesmo como opostos meus, quase um choque elétrico de
opostos, sabe? Essa galera do curta-metragem brincando de fazer
cinema de piadinha, sabe? É tudo o que eu não quero... De outro
lado, tem uma galera nova, mais ligada à experimentação mesmo
e com a qual me identifico bastante. Uma galera para quem não
importa onde o filme vai ser exibido, que quer fazer as coisas
na raça, que não quer saber se o filme vai passar em festivais
ou em exposições... E que faz os filmes assim mesmo!
Cezar: Pensando nessa questão de onde os
filmes vão ser apresentados... Você tem vendido seus trabalhos?
Como funciona isso?
Cao: Tenho vendido meus vídeos, especialmente
os mais curtinhos. Um deles, o Sopro, de cinco minutos,
vendi para o Guggenheim por R$ 23.000,00. Por outro lado, filmes
mais longos, como o Alma do Osso, você acaba só vendendo
para alguns lugares específicos. O Rua de Mão Dupla, por
exemplo, vendi para o Canal Brasil, com 75 minutos, e ganhei,
sei lá, uns R$ 4.000,00. A diferença de proporção é muito grande
entre os dois mercados. Tudo bem que é um saco, mas ainda bem
que existem esses milionários que vão pagar 10 mil dólares, 20
mil dólares para ter o original ou as primeiras cópias dos nosso
trabalhos... Se não fosse assim, eu não teria como comer, porque
é claro que eu posso pegar aqui e te dar um Sopro em DVD,
está aqui no meu computador e você pode copiar, mas não vai ter
a exclusividade de ser uma das únicas cópias oficiais do filme,
a número 3 de uma tiragem de 8, por exemplo, e que vale algo
como 10 mil dólares... Os americanos milionários que não sabem
onde é que enfiam dinheiro funcionam assim, querem essa exclusividade,
esse valor.
Cezar: Uma coisa que você falou e que eu
queria voltar é sobre a sua relação com o acaso.
Na ilha de edição você tem essa espera do acaso? Se o acaso
é tão importante como é que você cria pra que o acaso possa surgir?
Você pensa nele?
Cao: “O acaso é o deus da razão”... Essa
é uma frase de que eu gosto muito. O acaso é a divindade da razão,
entendeu? Na edição do Alma do osso, por exemplo, eu não
tinha a menor idéia do que seria esse filme, a menor idéia, tinha
assim uma leve impressão do personagem, eu tinha algumas noções
do que eu queria, queria um filme mais silencioso que tratava
da vida de um “eremita”, não queria um filme com muita fala...
Você tem algumas vontades, mas aí é que entra a coisa intuitiva,
a relação de mistério entre o diretor ou o editor e as imagens.
O afeto e o acaso são essenciais. A razão está ali para administrar
esse fluxo porque, enquanto você faz o filme, o filme te faz.
Merleau Ponty escreveu: “Não é o escultor que esculpe a escultura,
é a escultura que esculpe o escultor”. Então existe uma coisa
recíproca, um fluxo em que você é como um “cavalo no pai de santo”
do candomblé. O “cavalo” é aquele que recebe o santo. É como se
o filme estivesse montando em você e você vai gerando aquela forma
final.
Cezar: Mas quando você está editando você
tem essa sensação de estar em transe?
Cao: Tenho. Agora no A alma do osso
eu fiquei 15 dias e 15 noites, época de natal de 2003 para 2004,
trabalhando direto. Minha mãe me ligou, falando: “É dia de natal
e aí, você não vem não?” E eu nem tava lembrando, fiquei em casa
fechado e nem lembrava de nada. Passava o dia inteiro ali, só
saia um pouco, ia ali no parque, andava um pouco enquanto renderizava,
entendeu? Porque esse negócio do render é essencial para
editor. Fico puto que essas máquinas não tem mais render!
Eu lembro do O fim do sem fim, que era mais lento ainda
e eu botava pra renderizar e ficava lá 3 horas esperando...
Era esse o momento que eu tinha pra andar, adorava andar, ia para
o parque e o filme ficava na cabeça... Você fica meio em transe,
você fica impregnado pelo personagem, pelas imagens, enquanto
você captura, você vai percebendo pra que caminho o filme vai
ou não vai.
Cezar: Matisse falava: “se eu parar pra
pensar eu não pinto”... Você acha que esse seu transe é algo irracional?
Seria isso?
Cao: Não. Acho que é as duas coisas. A
razão dá ordem, como eu disse, ao deus que é o caos. Mas você
não tem como criar com distanciamento, você precisa estar imerso.
O fim do sem fim, revendo hoje, eu tiraria algumas coisas...
Iria de 92 para uns 70 minutos. Mas isso é coisa que só falo agora,
depois de estar fora do processo criativo. Durante o processo,
é preciso se perder lá dentro.
Cezar: Mas o que te orienta de verdade
na hora de criar?
Cao: O que me orienta é a empolgação. É
isso que me orienta, é eu olhar aquilo ali e achar lindo, me excitar.
É isso. Às vezes você tem uma idéia, uma imagem que você acha
ótima, mas na hora de colocar dentro do filme... você acaba perdendo
ela. É como matar um filhinho querido seu... É como deixar de
lado alguém que você gosta. A idéia era boa, a imagem era linda,
mas não consegue sobreviver ali. Porque a idéia é boa, mas às
vezes o delírio é mais importante – o delírio do personagem e
do diretor. E você tem que respeitar isso e deixa de lado algumas
imagens, em prol de uma narrativa do todo que deixa de lado aquela
parte querida. É assim.
Cezar: Lembrei de uma frase do Bacon, em
que ele diz que sempre se espanta quando entra num açougue e percebe
que não é ele que está pendurado lá (risos)...
Cao: Isso é ótimo. (risos)
Cezar: E eu fiquei pensando: será que o Cao quando
vai lá no eremita (A Alma do osso) e tem essa relação com
ele, entende? De pensar: “será que eu poderia estar no lugar dele?...”
Ir atrás de um “outro” e perceber que não há clareza de porque
não é você quem está ali...
Cao: Com certeza. Às vezes o limite se
perde e você não vê clareza de ponto de vista. Quem está onde
e porquê... E a idéia original do filme era fazer um filme em
que eu iria ficar com uma câmera isolado num apartamento, e um
eremita de verdade filmaria a sua própria vida... A idéia de quando
eu escrevi o projeto era inverter os papéis, um diretor ser personagem
e um personagem ser diretor... Mas, na hora de começar, eu acabei
fundindo as duas “partes” – achei exagerado, fingir que eu era
um eremita... E a “rua de mão dupla” se deu de maneira menos direta
no filme do que na idéia original. Porque me incomoda essa coisa
de se colocar nos filmes, precisa ser muito fundamentada para
não parecer exibicionismo... É um desafio que essas novas câmeras
digitais trazem, porque é muito fácil estar com uma câmera o tempo
todo, viajando o tempo todo com a câmera... O importante é você
não ser levado pela preguiça, não transformar a leveza da câmera
como solução para tudo. Dependendo do filme, você pode querer
um equipamento mais pesado, uma câmera de vídeo maior. Agora,
essas pequenas câmeras têm a possibilidade de dar à imagem a sensação
de um fluxo de vida, de uma percepção de mundo imediata como um
escritura por imagens... E daí vão surgindo trabalhos, idéias...
Uma atrás da outra.
Cezar: E você, seguindo essa questão da
intuição, acha que o artista hoje tem uma função definida? Você
pára para pensar como você se coloca em relação ao mundo dentro
dessa identidade? Isso é uma questão que passa pela sua cabeça?
Cao: Existe um mito do artista, aquele
criado principalmente pelos românticos do Século 19, de que o
artista é um gênio criador... Esse mito não me interessa porque,
para mim, a criação artística se parece e pode estar em toda forma
de trabalho e atuação. Mas se criou a idéia do artista como um
clarividente, um profeta, algo meio Glauber Rocha... É claro que
você cria mecanismos estranhos de percepção da realidade, uma
forma diferente de sugerir outras formas de vida. Se a obra de
arte tem uma função, eu acho, é a de tratar de algo que a lógica
do capitalismo por vezes deixa de lado que é a inutilidade, a
falta utilidade. A arte é uma manifestação do inútil, ela não
serve para nada, mas ela não tem uma função mercadológica, objetiva,
prática na sociedade funcionalista, ela não é funcional, ela não
está dentro de um espírito funcionalista. Agora, é preciso rever
essa tendência, cada vez pior, de idolatria do artista em detrimento
da obra. Você tem que saber lidar com o ego porque é claro que
o artista é uma figura meio isolada da sociedade, meio diferenciada
e que precisa ter um ego forte para se sustentar... Eu acho que
a criação é um processo que envolve milhões de coisas, mas é um
processo essencialmente solitário que envolve você e você e você.
É uma confluência de fatores do artista, do criador da obra, então
isso te leva a mundos ilhados e você de alguma forma tem necessidade
de falar disso ou de se manifestar, ou de se posicionar, de colocar
isso no mundo. E soa um pouco como uma coisa do ego, aquela pessoa
que só fala daquilo. Neguinho que sai lá de um negócio de contabilidade
não está afim de ficar falando da matemática, da conta não sei
o que, não tem muita graça. Quando a pesquisa do senso bate lá na porta e pergunta “o que você
faz?” e eu respondo “sou artista”, sempre escuto a mesma resposta.
“Isso não conta na lista”... O artista sempre ocupa esse lugar
fora da ordem.
Cezar: Qual foi o primeiro trabalho que
você fez que teve um reconhecimento, que chamou atenção como algo
diferenciado?
Cao: A arte vem muito da percepção do outro,
é com ela que você vai se definindo. Pois eu tentei fazer trabalhos
mais comerciais e percebia que os publicitários odiavam minhas
fotos, os jornalistas também... Me achavam estranho, me chamavam
de “estranho”. Eu tentava colocar alguma coisa a mais, algo diferente,
especial. Fiz isso com fotos de jornal, filmando casamentos em
Super-8, e eu ia vendo que eu queria cada vez mais fazer coisas
que os outros achavam doidonas, que não cabiam ali nesses trabalhos
“profissionais”. E eu passei a mostrar para os amigos, para alguns
artistas plásticos, e você vai percebendo que existe um olhar
ali, algo que chamava a atenção e instigava quem via. É uma mistura
de muito trabalho com uma forma natural sua de olhar o mundo.
É algo que surge aí nesse mistério, o documentário é algo que
vem do mistério, o encontro do que você cria com o outro é sempre
algo que vem de um mistério. Eu acho que é isso que me interessa...
Filmografia resumida de Cao Guimarães
O Andarilho (2006)
Acidente (2006)
A Alma do Osso (2004)
Rua de mão dupla (2004)
Da Janela do eu quarto (2004)
O Fim do Sem Fim (2000)
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