em processo
Filmando ao redor
Conversa com Kleber Mendonça
Filho sobre seu primeiro longa de ficção, O Som
ao Redor
por Leonardo Sette
Como surgiu o roteiro e quanto de autobiográfico ou de você mesmo há nele?
O Som ao Redor é provavelmente
um filme sobre um certo estado de espírito. De uma maneira
geral, meus filmes talvez se dividam entre os que trazem experiências
pessoais (Vinil Verde, Noite de Sexta Manhã
de Sábado) e os que são observações
pessoais (A Menina do Algodão, Recife Frio,
Crítico). No fundo, é tudo a mesma coisa,
talvez algo impossível de ordenar. Essa mistura de cenas
vividas e cenas vistas, ou de cenas re-imaginadas, me dá
uma certa segurança. Outro dia, uma amiga, que já
tem mais de 70 anos e um super senso de humor, me disse que hoje
em dia só atravessa a rua com o palhaço do Detran.
Achei engraçado e muito real em termos de espaço
público brasileiro, certamente no Recife. É só
um exemplo, algo que ouvi, mas que me interessa pela verdade:
o humor é natural, a ironia real, me pareceu uma boa história,
ou um bom pedaço de história.
O filme, portanto, tem muita coisa da minha experiência
não só com a idéia de espaços construídos,
ou espaços ociosos, mas com temas que talvez sejam políticos.
Eu acho que o roteiro veio de sentir um certo clima no Brasil
dos últimos anos, e por conseqüência, ou reflexo,
em Pernambuco. Me interessa a arquitetura como sintoma de uma
sociedade que não é saudável, a arquitetura
como diagnóstico brutalista, como algo que deu e está
dando errado. Acho que meus filmes normalmente surgem como respostas,
um pouco como um leitor que decide escrever para um jornal, revista
ou site porque um determinado assunto o incomoda, ou lhe deixou
com o desejo de colocar seu ponto de vista. Me interessa uma sensação
de que a percepção do "pobre" e do "rico"
talvez esteja mudando no país, ainda com o desprezo e o
medo recíproco e histórico das camadas de cima e
de baixo, se transformando em uma demanda maior por respeito,
por parte das classes mais baixas, sem tanta resignação
católica construída na falta de educação.
Já sentia isso há um bom tempo,
e eis que me vi de frente para uma deadline do MinC em 2008 para
projetos de Baixo Orçamento. Eu já não havia
participado nos anos anteriores, acho que por me sentir ainda
verde em relação a seja lá o que estava querendo
fazer, mas achei que, desta vez, não me perdoaria se deixasse
o prazo passar. Isso foi numa sexta-feira, o que me dava uma semana
para escrever a primeira versão desse roteiro. Escrevi
e saiu rápido. Eu não conseguia parar de escrever
pois eu mesmo queria saber como as coisas se desenvolveriam, o
que iria acontecer nas próximas páginas, para onde
iria. Foi muito bom, e extremamente desgastante emocionalmente.
O roteiro ficou entre os 20 finais, não ganhou daquela
vez, mas eu tinha o roteiro. É muito importante ter o papel
em mãos e há uma diferença grande entre a
idéia narrada aos amigos e esse monte de papéis
com páginas numeradas. Ganhou no ano seguinte, mais desenvolvido.
Além desse artifício do
deadline do MinC, como foi o processo de escrever algo mais longo?
É como eu falei, escrevi em 8 dias, o que é muito pouco tempo para 80 páginas, e as coisas saem simplesmente, você ali escrevendo e tudo sai. Os personagens começam a conversar entre eles e, não é bem o que eu quero que ele fale, ele simplesmente fala. Eu acho que essa é a melhor escrita em qualquer coisa, em jornalismo, na literatura e no escrever um roteiro. Você simplesmente canaliza o que as idéias estão falando e espera que no dia, semana ou mês seguinte não ache tudo uma merda. É muito bom escrever.
Havia uma certa cobrança já, não é?
É natural, e totalmente insensato. Desde
o Vinil Verde (2004) que as pessoas perguntavam quando
eu faria o longa, uma série de cobranças... Na verdade,
são cobranças sociais, não são cobranças
estéticas ou narrativas, é cobrança, tipo,
você está namorando e alguém pergunta "vão
casar quando?"; aí você casa e perguntam "vão
ter filho quando?". É a mesma coisa, um misto de carinho
com curiosidade. A cobrança nunca leva em conta se você
realmente tem o que dizer ou se você tem um roteiro. É
só uma vontade bem genérica de ver um filme que
dure mais do que 25 minutos feito por você, acrescida de
uma admiração pelo seu trabalho, que é algo
que respeito muito.
Escrevi o roteiro com 39 anos, hoje eu tenho 42. A rispidez com a qual escrevi o roteiro de O Som ao Redor mostra que eu tinha já muita coisa guardada. Não existia um bloco de anotações, tudo meio que... uma coisa puxava a outra... Dessa primeira versão até a da filmagem, tenho essencialmente o mesmo roteiro, o que aconteceu é que ele passou por pequenas expansões, ele agregou detalhes, e esse texto tem muitos detalhes. De qualquer forma, nenhuma cena caiu do roteiro original, elas foram expandidas em relação à primeira versão.
Isso das locações tão
próximas de você não aparece apenas nesse
novo filme, está também em Eletrodoméstica,
Enjaulado, Vinil Verde. Só que dessa
vez havia caminhões com equipamento em torno do teu prédio,
muito mais gente trabalhando, durante muito mais tempo - enfim,
dava a impressão de que você estava fazendo um longa-metragem
no teu próprio jardim.
Eu já ouvi algumas vezes que eu supostamente adoro meu bairro, Setúbal, por sempre retratá-lo. Esse bairro, na verdade, é onde eu tenho a minha casa, que eu adoro, é a minha casa. O bairro, no entanto, ilustra tudo o que há de errado na vida em comunidade hoje no Recife, ou no Brasil, da casta que é a classe média, média alta. É um bairro de cimento e concreto onde vizinhos podam árvores que dão farta sombra no verão porque as árvores sujam o pátio com folhas e mangas. Os muros altos de prédios de 25 andares tornam a coisa toda inóspita, como se você estivesse sobrando na rua. As casas já foram, ou as últimas estão sendo demolidas. É claramente uma comunidade dodói, cuja idéia de arquitetura resume-se a barrar o elemento externo e proteger quem está dentro, e a altura de uma morada seria o escudo mais natural e desejado. Por tudo isso estar do lado de fora da minha janela, eu ainda sinto o desejo de retratar isso, comentar isso.
De qualquer forma, é muito bom poder gravar um som para a fase de montagem do mesmo ponto de vista da câmera no filme, ali a cinco metros do meu computador. É bem orgânico e as fronteiras entre imaginação, lembrança afetiva e registro factual ficam muito borradas. Enfim, é algo que tem aparecido numa leva de filmes pernambucanos (Menino Aranha, de Mariana Lacerda, Eiffel, de Luiz Joaquim, Um Lugar ao Sol e Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, Praça Walt Disney, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, Recife Frio) que nunca foi coordenada em reunião ou projeto, cada um com um olhar distinto sobre o mesmo tema: a cidade. Como tem ocorrido, são filmes totalmente diferentes entre si, isso é maravilhoso.
Você me contou que reviu todos os filmes de Tarantino antes de filmar, explicando que era mais pra se contagiar pela alegria de filmar que eles transmitem, não pela estética. Além disso, viu outras coisas?
Eu
tinha chegado de Cannes e entrei direto na pré-produção
de O Som ao Redor. Estava saturado, de certa forma, não
sei se de maneira boa ou ruim. A coisa da energia dos filmes de
Tarantino para mim era importante, e os filmes dele têm
esse aspecto absolutamente encantador. Revi todos em bluray, foi
incrível. Juntando ao fato de que nenhum filme dele nem
de longe lembra nenhum filme meu, me pareceu a má companhia
perfeita para quem está prestes a filmar. Para além
disso, eu não tenho muito como falar sobre referências
específicas. Eu já agradeci nos meus curtas a Carpenter,
Marker, Monty Python e De Sica, agradecimentos discretos ali no
final, mas que viraram faróis de milha em relação
a algumas interpretações desses mesmos filmes.
Em O Som ao Redor, estou pensando em
deixar tudo mais lacônico. Tudo dando certo, o filme será
bem claro nas suas intenções, ou, melhor ainda,
perfeitamente turvo em relação ao que ele é,
ou de onde veio. É lindo quando o observador, ali sentado
no cinema, enxerga possíveis laços entre o filme
visto e filmes do passado. Mas o assunto partir do artista diretamente
pode moldar de maneira muito dura o olhar do observador, e isso
é algo que quero evitar, com certeza não nesse processo
todo de fazer o filme. Mais uma vez, Tarantino parece sair ileso
ao falar tanto sobre suas próprias referências, mas
o caso dele, outra vez, é raríssimo. Pensando bem,
ele não saiu ileso não, falou demais várias
vezes.
Na base de produção (que ocupou um casarão antigo que já ostenta a placa do edifício que será construído em seu lugar) havia uns cartazes de filmes colocados nas paredes. Houve alguma idéia na hora de escolher tal ou tal cartaz, em tal lugar da casa?
Era mera decoração com minha coleção de cartazes encostados ao longo dos anos. Achei que seria uma maneira de decorar a base com o próprio cinema, criar um clima para toda a equipe. Sei lá. Me agrada a idéia de você ser recebido por Mad Max ou Pam Grier grandona no cartaz de Jackie Brown, mesmo que os filmes não tenham nada a ver com esse filme que estávamos fazendo. Foi muito bom, a base era um lugar sensacional.
Como foi a experiência com os atores?
Foi algo que eu nunca havia tido nessa escala,
moldar o drama através da repetição e do
tempo, com muita conversa boa sobre a vida. Direção
e correção também. Mas eu tive sorte porque
terminei trabalhando com o que acabou sendo o mix perfeito de
poucos grandes atores profissionais e outras pessoas que não
eram exatamente atores, mas que pareciam desde sempre entender
as situações humanas do filme. Escolhemos um grupo
de pessoas que, além de atuarem, têm uma inteligência
de vida. É algo que você percebe no primeiro "teste",
confirma no segundo e segue encantado nos ensaios e na filmagem.
Aliado a isso, o trabalho feito com Leonardo Lacca e Amanda Gabriel,
preparadores de atores comigo. Um começava a frase, eu
e o outro terminávamos, muito bom, trabalhando com os atores
e com os rascunhos de cenas.
Com todo mundo, com todas as cenas, você pôde ensaiar?
Com todo mundo, em 90% das cenas. Algumas cenas
ficaram descobertas, mas até pela confiança que
eu já tinha no ator por causa dos outros ensaios. Quando
estava tudo enquadrado e a luz pronta, e Clara (Linhart, assistente
de direção) dizia "vamos ensaiar", eu
dizia "não, a gente vai de primeira". E eu rodei
de primeira várias cenas com alguns atores. Com outros
não, a gente precisava ensaiar por várias questões
- o próprio ator, o foco e a câmera. Mas em várias
cenas eu queria o primeiro take daquele ator. Mas ensaiar
previamente, claro, é absolutamente essencial porque é
ali que você descobre a cena, através do ensaio e
da conversa, é aí que você e o ator ganham
confiança na cena, é onde eu confirmo que a cena
é do caralho, ou que ela não é presta. E
ele entende exatamente o que ele está fazendo ali.
Você elencou Gustavo Jahn, de Santa Catarina, para um dos personagens principais. Como você chegou à escolha dele, por exemplo, que não é um cara de Recife, se é que isso é uma questão?
Eu gostei do rosto de Gustavo já nos filmes
que ele e Melissa (Dullius) fizeram, Éternau (2006)
e Triangulum (2008), gosto do jeito dele, é uma
presença forte, natural. Além disso tudo, ele tem
essa cara de quem acompanha as coisas sacando os códigos,
vez ou outra com aquele pânico controlado. Gustavo tem também
uma cara de cinema, "a movie face", e uma inteligência
de vida. Irandhir (Santos) é outro, que sorte tê-lo
no filme. O acompanhava desde Amigos de Risco e Baixio
das Bestas. Foi incrível trabalhar com ele. Aconteceu
de ter muita gente que parecia entender o que eu estava falando,
ou que fingiam saber o que eu estava propondo! Maeve Jinkings,
WJ Solha, foram muito assim, Irma Brown muito assim, Lula Terra,
Yuri Holanda. Foi um privilégio ter essas pessoas no filme.
Você classificaria o filme como realista? Para além disso, sabendo da tua admiração por esse novo cinema romeno, como você vê o filme com a ligação com o real, com o atual, com esse realismo cru, com essa tridimensionalidade com os personagens e não com o representativo social?
Eu gosto muito do cinema romeno, é tão livre de bullshit num mundo que valoriza tanto a frescura como prova de autoralidade. É um cinema tão cheio de pontos de vista pessoais, lembranças de época, humor sentido, um senso de história vivida. Os filmes do Corneliu Porumboiu (A Leste de Bucareste e Policial, Adjetivo), por exemplo, são para mim fontes de identificação enormes. Eu, no entanto, não sou romeno. Sou brasileiro e pernambucano, e uma afinidade com o cinema romeno seria uma feliz coincidência de relações afetivas compartilhadas.
Eu me interesso pela união do cinema com o mundano, e veja que aí, às vezes, o cinema implica trazer o elemento fantástico que, para mim, é sinônimo de cinema. De qualquer forma, aliar-se ao mundano é essencial. O mundano absoluto, como as cozinhas das pessoas, as salas de estar ou áreas de serviço. O problema que eu vejo, e que me desagrada em boa parte dos filmes realistas, mas nunca nos romenos, é que o mundano é tratado de maneira mundana. Não sobra muito interesse, não é mesmo?
É bom poder usar a realidade como base e dar uns tapas bem dados, uma cusparada na cara aqui, um empurrão ali. Dependendo de como você enquadra aquela cozinha absolutamente normal, ela pode se transformar numa cozinha de cinema! De algo que você espera ver numa tela larga, ou pelo menos que eu gostaria de ver numa tela grande. A visão de cinema, para mim, não está tanto num set de estúdio feito sob medida para o filme (pode estar também, aliás), mas em como você transforma o mundano sob suas próprias especificações, no seu próprio cinema, no seu próprio set.
Existe uma escola americana do cinema fantástico onde isso é potencializado com o cinema de gênero, e quando funciona, o prazer é muito grande. Halloween, do John Carpenter, que se passa numa vizinhança totalmente real de classe média, ou ET, de Spielberg, ou Fright Night, do Tom Holland, onde dá para quase sentir a tinta descascada na janela de madeira, mas onde temos uma história de vampiro. É fascinante essa união, que eu já experimentei em A Menina do Algodão (2002, com Daniel Bandeira) e Vinil Verde, filmes de gênero, mas "realistas", 'agredidos' aqui e ali pelo 'fantastique'.
É difícil filmar de maneira realista?
No realismo, o primeiro obstáculo a ser
vencido é parar de abrir uma cerveja toda vez que você
filma alguém bebendo um copo inteiro de água em
35mm. Pode ser em digital também. Realismo não é
apenas isso, muito embora, quem sabe, talvez estejamos falando
de um belo personagem bebendo um maravilhoso copo d'água.
Não há manual para isso, no final das contas você
termina agindo como curador de situações, de enfoques,
é tudo muito intuitivo. Durante a filmagem, eu sempre tentava
relaxar e esperar que desse tudo certo com a conivência
dos atores. Tudo dando certo, o observador irá não
apenas entender mas também reconhecer a importância
dos momentos que foram selecionados, algo não muito distante
de organizar um grupo de filmes no Cinema da Fundação
(nota do entrevistador: Kleber é programador da sala há
13 anos), ou no Janela.
De qualquer forma, uma idéia de realismo
que me atrai, dentro de uma visão literal do termo, é
estabelecer uma ligação entre o mundo real, o mundo
filmado, remixado por mim e pelos meus colaboradores, e aquele
indivíduo que está entre as duas coisas, o espectador.
As reações na época do Eletrodoméstica
(2005) me estimularam muito a perseguir esse tipo de enfoque,
pois ouvir alguém dizendo "É exatamente isso..."
em relação aos modos, ao look, à
idéia de calor, ócio, Brasil, Recife, à própria
reinterpretação da realidade vivida.
Foi curioso visitar aquele set noturno
na praia e perceber Pedro (Sotero) como diretor de fotografia,
com aquela câmera Aaton 35mm em cima de uma grua, porque
lembrei dele como ator improvisado no Noite de Sexta Manhã
de Sábado, sete anos antes, diante de uma camerazinha
digital operada por você mesmo, naquela mesma praia. Como
você se sentiu dentro dessa mudança de estrutura
técnica e orçamentária?
É como um músico que sempre fez
coisas legais com um tecladinho Casio dos anos 80 e de repente,
tem o Casio e três Yamahas e um Moog num estúdio,
incluindo um piano de cauda. Se tudo correr bem, o artista irá
se sobrepor aos meios. Eu sempre fiz meus curtas da maneira que
eu quis e pude fazer, e isso envolvia meter a mão na câmera
e fazer o filme, fotografando-o, seja em VHS, Hi8, mini-DV, foto
still, HVX-200, 5D, etc. Curiosamente, eu nunca me apresentei
como fotógrafo, mas como 'o diretor que fotografou o filme'.
O Som ao Redor não é esse tipo de filme. Eu
sempre achei que ele seria 35mm 2:35:1, é assim que eu
o via. Significa que eu estou tecnicamente abandonando os formatos
anteriores para chegar a um novo formato.
Tratei
tudo sem nenhuma cerimônia, dentro do possível. Nesse
sentido, eu temia algo que vem da própria estrutura
do fazer cinematográfico e que me irrita muito só
de ouvir falar, que é um senso de hierarquia dos formatos,
algo que eu vivi duramente nos anos 90, quando meus filmes eram
vistos como meros "vídeos", enquanto eu os enxergava
como obras, independentes de qualquer formato. Ou seja, antes
de qualquer coisa, de serem bons ou ruins, eram "vídeo".
Uma forma peculiar de racismo aplicada ao cinema. Nessa década
de 2000, já vi o oposto, pois o Eletrodoméstica
foi rodado em 35mm e ficava no ar um "respaldo maior"
em relação ao filme por causa disso. Isso já
deveria ter caído em desuso, mas permanece em alguns espaços.
Portanto, em O Som ao Redor criou-se uma mística
em torno do 35mm/Scope 2:35 e as pessoas me sugeriam nomes bem
graúdos para a fotografia, que eu respeito muito e admiro,
mas que não me interessavam, talvez por limitação
minha.
Lembro de como você hesitou na escolha do fotógrafo, você tinha um certo medo de...
Eu não conhecia de perto essas pessoas e não queria, em hipótese alguma, lutar pelo meu filme considerando que, na maior parte dos meus trabalhos anteriores, era eu quem mexia na câmera e fazia o que bem entendia. Eu não queria medir autoridade com ninguém nem contra-argumentar mais do que o que seria natural com alguém que está administrando a câmera, se isso realmente ocorresse, e que teria, em tese, mais experiência do que eu. É claro que a colaboração maravilhosa com o fotógrafo é uma coisa desejável, mas falo de diferenças de visão mais próximas do conflito relacionadas ao tom, o enquadramento. A princípio, sou eu quem enquadro. Obviamente que por mais paranóico que tudo isso possa parecer, digamos que tenho alguma experiência de acompanhar filmes de amigos, colegas, e das histórias vistas, contadas, ao longo do tempo.
Surgiu então a idéia, coerente com
o que eu sempre fiz nos meus filmes, de trabalhar com alguém
que é talentoso e que é um grande amigo, Pedro Sotero.
De Amigos de Risco, Um Lugar ao Sol, Laura e
do Mens Sana in Corpore Sano, Pedro tem uma energia incrível
e já mais do que comprovada, além de ser um fotógrafo
zero frescura. Nos entendemos muito bem, sempre, como amigos.
Bizarramente, trabalhei com Pedro em 2003 no Noite de Sexta
Manhã de Sábado, que eu fotografei em Mini-DV
(1 CCD!), e ele era ator. Em 2009, ele fez uns 30% das imagens
de Recife Frio em HD. Somos amigos há dez anos.
Foi a primeira direção de fotografia em película dele?
Primeira direção de fotografia em película, mas ele já tinha a segurança profissional a partir de muitos trabalhos, e o resultado é excelente, totalmente dentro do que eu queria. Nos cercamos de uma equipe excelente. Pedro trabalhou de maneira muito próxima com Fabrício Tadeu, que é um puta operador de câmera. Fui vendo como ele é bom quando eu dirigia a cena, mas nunca os pequenos respiros que a câmera exige durante um plano, e estava tudo lá, com o ator, com a cena. Fabrício é ninja, e Gustavo Pessoa no foco, foi muito bom. Me senti tranqüilo. Claro que existiam medos quando começamos, eu sempre conversava com Pedro e Fabrício sobre enquadrar scope 2.35. No final, veio de maneira muito natural, numa era onde a TV HD dita uma nova janela, o 1.78. Ouvimos dez vezes temores de técnicos e produtores amigos sobre o uso do 2.35 como sendo inadequado para vendas na TV... Não seria por isso que eu abandonaria o formato.
E decupagem dos planos, você preparou bem antes ou foi muito na locação, na hora?
Eu preparei no roteiro, nos ensaios e nas visitas
de locação. Tinha sempre comigo minha câmera
para fotografar e gravar em vídeo planos e set-ups de câmera.
Em alguns casos, a locação mudou para melhor. Era
melhor que o roteiro. Eu tinha já tudo bem encaixado na
minha cabeça, mas sem storyboard. No ultimo dia,
eu mostrei a Pedro uma imagem feita três meses antes de
filmar na vera, na locação, e era exatamente a mesma
cena rodada para o filme. De certa forma, o filme estava esperando
sair já há um bom tempo.
Você chegou a filmar com duas câmeras simultâneamente?
Algumas cenas sim, mas a segunda câmera,
uma BL Evolution, era uma espécie de reserva/segunda unidade,
e virou titular nos últimos dias, pois a principal foi
para A Febre do Rato, de Cláudio Assis, que começou
a filmar também no Recife. Conseguimos uns takes
importantes com a BL, que é pesadona, acho que dos anos
80. A Aaton Penelope era a câmera principal, com duas perfurações,
formato Techniscope, que permite que um mesmo rolo de 120 metros
dure cerca de dez minutos e não quase cinco na janela 1:
2,35, como nas câmeras convencionais.
E com relação à textura, paleta de cores, digo, a imagem em si, fora enquadramento e movimento de câmera, o que vocês buscavam?
A única coisa que eu falei pra Pedro foi que queria que esse filme tivesse uma imagem associável a uma idéia de "cinema", tipo 'movie-movie', mas que fosse também naturalista. Sobre paleta de cores, é algo que me lembra perguntas sobre "o arco do personagem"... Se a super equipe de Juliano (Dornelles) na arte conseguiu traçar paletas misteriosas que eu não fiquei sabendo, e que eu nem percebi, maravilha. Confiei neles. Minha energia foi mais em outras áreas, como a direção de arte no sentido de objetos, feeling para os espaços, e o quadro em si. Se me parece bom e natural, está tudo certo. Se os três personagens em pé conversando não estão todos de vermelho, beleza.
Não sei se esse é um filme onde um sentido orquestrado de cores aqui e ali é algo que me interessa, pois esse tipo de realismo já parece vir nas situações e como é enquadrado.Talvez num outro filme sim, e um exemplo óbvio é Recife Frio, onde eu evitei sol, céu azul e as cores berrantes da nossa cultura. Em O Som ao Redor, estava tudo liberado, sol, chuva, nuvem e as cores berrantes daqui. O que também me levou a não querer filmar com a RED (nota do entrevistador: câmera digital de alta definição, usada em A Rede Social, por exemplo). Recife tem uma luz muito dura e eu e Pedro achamos que não era o que queríamos. Esse nosso branco total do sol de uma hora da tarde, em digital a tendência é ficar bem, sei lá, digital. Não era para esse filme. Terminou que incorporamos muitas mudanças de luz nos planos, eu adoro isso, reflete muito da experiência de luz que tivemos filmando em julho aqui no Recife. Tudo muda muito rápido, de sol a nublado com sol e chuva. Numa única tarde, rolou um stress que hoje é engraçado, mas realmente parecia que São Pedro estava de sacanagem brincando com o interruptor.
Vocês não assistiram filmes juntos ou coisas assim?
Mais pelo prazer e as good vibes de ver
um belo filme do que "olha aí, vamos fazer algo parecido".
Lembro que vimos Two Lovers (2008), do James Gray, que
se passa em Nova York no inverno. Vimos Poltergeist também,
onde aflorou mais uma vez o debate em torno da autoria do filme
(Spielberg ou Hooper?), e constatamos chocados o quão bem
fotografado é o filme.
E o som, afinal?
É curioso que muitos me perguntam sobre o som e o peso
do título -O Som ao Redor - parece gerar a expectativa
de que teremos um filme espetacular sonoramente, e não
sei se é bem por aí. De qualquer forma, adoro trabalhar
com som e, sim, quero que soe bom, mas bom o suficiente. Eu trabalhei
com Nicolas Hallet e Simone Brito. Queria trabalhar com eles há
muito tempo porque acho que há ali uma filosofia diferente
de gravação do que eu tenho ouvido do cinema brasileiro
em geral. Engraçado que nos meus filmes eu sempre
fiz o som, a gravação do som e a montagem, e essa
foi a primeira vez que trabalhei com alguém que faz o som
e eu não tenho que me preocupar com muita coisa. Foi bom. Tinha
tido uma experiência incrível com Nicolas quando
fiz a montagem de som de Muro (2008), de Tião,
com Emilie (Lesclaux). O material que recebemos era tão
bom que gerava problemas tipo "E agora? O que fazer?"!
Não tive muita dificuldade de escolher Nicolas... Mas com
as possibilidades que equipamentos baratos te dão hoje,
como esse gravador digital Zoom, alguma coisa eu mesmo tenho gravado
durante a montagem, especialmente ambiências.
E agora você está montando
o filme... Recife Frio você montou com Emilie,
e agora você chamou João Maria que é um colaborador
já de outros filmes.
Trabalhei com João Maria em Enjaulado (1997) e Eletrodoméstica. João não participou da produção desse filme, o que trouxe um desapego interessante pelo material, sem saber que tal cena foi trabalhosa, que choveu naquele dia, etc. Ver na cara dele o entusiasmo ou a indiferença por determinadas imagens é importante, pois é uma leitura mais pura, e isso era importante para mim. E João é uma figura.
E você tava me falando dessa coisa do material que veio para a montagem todo telecinado em HD e o quanto isso é precioso pra você.
Recife Frio já havia sido montado em HD, seu formato nativo, e tenho um sistema de edição conectado a um projetor Full HD. É duro aceitar passar um ano montando um filme em baixa resolução, um boneco feio do material que você terá no final do processo. Portanto, pedimos à Mega para receber tudo scaneado em HD. Além disso, posso projetar isso grande, sentir como está o material e os detalhes. Fazemos isso depois de terminar uma cena. Há coisas que você só descobre quando vê o filme projetado, pois a tela do computador engana. A Mega foi super parceira nisso, e é o primeiro filme no Brasil com as brutas em HD no formato Apple Pro Res 2K, que não é tão pesado como poderia ser.
E algum pensamento pra isso? Para a montagem?
Eu sempre digo que todos os processos me interessam
no cinema. E todos são muito fortes. Eu nunca havia passado
por uma filmagem como a que tivemos em julho e agosto, misto de
circo com acampamento e gulag. De qualquer forma, agora estou
na montagem e tem sido igualmente punk, mas de maneira diferente.
Em primeiro lugar, acho que esse processo deve necessariamente
ser longo. Por limitação minha, eu preciso de muito
tempo, e já estamos no nono mês. Entre outubro e
dezembro, é verdade que a coisa foi meio on-off, mas de
janeiro pra cá, tem sido intenso.
Primeiro, montamos o filme que veio do roteiro, editamos cenas
por puro prazer, começando pelo meio do filme, depois voltando
para o início, depois indo para o final. Aliás,
não sei se isso é uma coisa boa. O primeiro corte
foi um monstrengo deselegante e lento. Depois, emagreceu o filme,
descobrindo o que realmente há de importante. O próximo
foi abandonar tudo e voltar depois. Atualmente, estou sozinho
com o filme, num processo de imersão muito forte. Fazer
intervenções que surgem de um desrespeito sadio
pelo roteiro e de idéias que vêm com o tempo de maturação
que estou tendo. Não sei quanto tempo ainda terei pela
frente. É um processo duro. As sessões de montagem
acabavam por volta das 21h, mas minha cabeça continuava,
é estranho, você fica um pouco autista. Soluções
para uma cena às vezes vêm durante o banho ou indo
à padaria comprar pão. É também um
período de muito entusiasmo, decepção, medo
e muita satisfação. Vez ou outra, dá água
na boca. Aos poucos, chegam os amigos, e sempre digo que quem
tem amigo bom não faz filme ruim, e duas frases importantes
ditas por eles são: "por favor, tire isso" ou
"por favor, deixe isso". No final das contas, o mesmo
medo de sempre, de todos os filmes, "será que vai
prestar?".
Por você também ser crítico e programador de cinema há mais de dez anos, isso faz você imaginar ou projetar o lugar do teu próprio filme dentro do cinema brasileiro, por exemplo?
Eu não posso me preocupar com isso. Filmes estão numa dimensão à parte, são matéria orgânica, e se for um filme vivo ele vai agir como a boa bactéria que é (ou que virá a ser) e agir sobre o próprio cinema e nas pessoas, se alojar nelas sem muito esforço da minha parte, exceto por todo o trabalho que deu para fazê-lo. É a melhor coisa que pode acontecer.
1:15 AM
Kleber: alo
me: oi
Kleber: cheguei em casa e esqueci de lhe falar de grande e real "influência"
me: ótimo, diga
1:16 AM
Kleber: um livro que achei num sebo de Roterdã em janeiro
caso claro de "energia" pura sem coincidência
Defensible Space Crime Prevention Through Urban Design de Oscar Newman, um urbanista e arquiteto sobre mudanças no estilo de vida das cidades americanas fim dos anos 60 e a idéia de espaço privado e público
1:18 AM
me: que massa
Kleber: eu li 2 vezes, é muito interessante
me: mas em que ponto vc chegou nesse livro, foi antes de escrever o roteiro ou depois servindo mais de apoio?
1:19 AM
Kleber: não, foi há 8 meses apenas, já tudo bem encaminhado mas formalizou o q eram observações minhas
me: entendo
Kleber: através de estudos e pesquisas e interpretaçõs
me: sim, entendi que ótimo isso
Kleber: tava lá, de bobeira, fora de catálogo, 9 euros
1:23 AM
me: a capa é como?
Kleber: DEFENSIBLE SPACE vermelha, letras garrafais
me: sem imagem na capa?
1:29 AM
Kleber: sem imagem.
Entrevista gravada no Café Castigliani, no Cinema da Fundação (Recife), complementada e editada via emails e chat.
Maio de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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