olho no olho
A luz irrefutável
Uma conversa com Edgard Navarro
por Daniel Caetano, Fábio Andrade e Juliano Gomes
Uma conversa com Edgard Navarro nunca é só uma conversa. De uma mesma levada, ela pode se transformar em análise, em missa, em espetáculo, em festa, em diálogo filosófico, em sessão de regressão, em confissão, em hipnose. Nas quase três horas de uma manhã de sábado passada à sua companhia, Edgard pensou, repensou, cantou, se emocionou e nos intimou a tomar parte de cada uma das fases desse processo, a todo tempo. Uma entrevista com Edgard Navarro, portanto, está sempre fadada a ser algo muito, muito diferente de uma entrevista. Edgard não é editável, não é pautável, embaralha o off e o on como quem nunca separou a arte da própria vida... mas em momento algum o é por turra ou descortesia - palavras que nunca se adequariam à sua espontânea doçura. Ele é o capitão do navio e, naquela manhã de sábado, nós éramos seus fiéis companheiros de viagem. (Fábio Andrade)
Daniel Caetano - No O Homem que Não
Dormia, a personagem do Bertrand Duarte passa por um momento
de crise muito profunda...
Eu
sempre vivi em crise, a minha vida inteira. Neste filme, ela vem
porque a metáfora é sobre este karma, sobre este
peso, este tesouro que tem que ser revelado e que tem que passar
por uma morte, uma espécie de morte e uma ressurreição.
Desde a primeira vez que eu dei a primeira bola, meu primeiro
encontro com a Santa Maria (nota do editor: Santa Maria é
a forma que Edgard se refere à maconha) nunca foi uma coisa
tranquila... uma coisa saudável. Pra mim, sempre foi um
encontro com a esfinge. Um encontro com a morte.
Fábio Andrade - Isso me leva a uma pergunta que eu queria fazer. Eu vi o Eu me Lembro agora na Mostra do Filme Livre, e fiquei marcado por aquela última imagem da grua subindo pro céu, em busca de, não sei, da morte, de Deus, do sagrado... A realização de um filme também é um encontro com a morte?
Se você quer saber, com o Eu me Lembro,
ao ser explicitada essa agonia da memória consciente, eu
tive salvo conduto pra fazer o próximo, dois anos depois...
porque O Homem que Não Dormia tava vetado há
muitos anos. Então ele veio pra mim como uma provação.
Eu fui sagrado, eu fui admitido pra fazer o filme que eu queria
fazer há tanto tempo, e que ia me dar a resposta à
esfinge... ia me dar a libertação final. E isso
só me fez atiçar o desejo de continuar. Então
já não tinha mais nada a ver com a morte. O
Homem que Não Dormia vai encarnar essa morte que já
aconteceu, de um barão que já morreu, e que não
dorme.
DC - É um espírito, né? Tem uma coisa espiritual muito forte.
Muito forte. E tudo utilizado, do ponto de vista artístico, para não ser sectário, mas sim de ser uma experiência religiosa, usada como uma metáfora para dizer outra coisa, bem outra... falar de um tesouro que a gente tem, queira ou não, a gente tem um tesouro de luz no coração, que é a luz do espírito. Mas é uma luz do espírito que pra mim já se coloca como irrefutável. Não tem mitologia, eu não sou de nenhuma Igreja, de nenhuma seita...
DC - Tem uma coisa inclusive contra o dogma da igreja católica...
O que eu sinto é que, desde que eu era criança, eu tenho uma luz que é a alegria de viver. A ingenuidade, a curiosidade, o sexo, a busca do prazer... e essa busca de Deus no caso é a busca daquilo que eu não entendo. Eu olho pro céu porque o homem sempre olhou pro céu.
FA - E você filma muito o céu. É uma imagem muito recorrente.
É. O céu é sempre uma referência do homem. Nos planos das filosofias orientais, assim como da católica, tem essa dicotomia do céu e da terra... do yang e do yin. A mãe e o pai. E eu não duvido disso, porque é intuitivo, é junguiano, nesse sentido. Ele me pega por uma região que não é racional. E eu não primo por ser racional. Não me interessa ser racional. Pro meu próximo filme, estou me colocando algo a partir do O Pensador, do Rodin, que desfaz a postura porque ele saca que as respostas não estão dentro da mente. Se elas existem, elas estão lá naquele outro abismo, que é um abismo real, não um abismo mental.
Juliano Gomes - Mas ao mesmo tempo eu sinto que, no OHQND, existe também um abismo interno, que não é tão diferente do que está fora...
Não é diferente. Mas é muito diferente isto (Edgard repousa a cabeça sobre o punho, imitando a escultura) de Rodin, disto (ele abre os braços, ergue a cabeça e abre a boca, olhando para o céu). Esse abismo lá, no nada, no tudo, no infinito, no sem fim, pra mim é muito diferente desse abismo aqui (imita novamente a pose de O Pensador). Esse abismo, claro, é a mesma coisa, mas, paradoxalmente, é completamente diferente. A postura é outra. Não é uma postura fetal, o cara tá aberto e olhando pro zênite.
DC - Nos seus filmes tem sempre uma exposição
profunda dessas questões que te dilaceram, mas ao mesmo
tempo é tudo temperado por um humor muito corrosivo. Isso
aí desde seu primeiro filme até esse novo...
É o que salva. Tem uma das frases que eu
pretendo usar neste próximo filme que é "Seja
leve, ou seja, não se leve tão a sério".
Eu não posso me levar tão a sério, senão
eu vou ficar fechado. A gente se leva muito a sério...
a gente é muito empolado com essa postura de cineasta.
Podia não ser cinema. Podia ser dança. Podia ser
canção. Ou podia ser o caminho de um mendigo louco.
DC - Que é o Superoutro.
Sim. Eu podia ser esse mendigo. Eu sou iconoclasta.
Eu não sou ícone. Como eu sou iconoclasta, que horror
seria ser ícone, porque meu destino é ser derrubado.
Até por mim mesmo. Eu podia ter me suicidado, isso é
um fato. Eu tive com o suicídio muito perto de mim, e acho
que não sou raro nisso. Tem muita gente que gostaria de
ter se matado em algum momento da sua vida, porque achava que
não ia ser capaz de lidar com as suas dores. Isso me fez
crescer. Eu não me matei, e fui ficando vivo, vivo pra
cachorro - que nem Gil.
FA - O Daniel fala de humor, mas mais do que o humor o que me atropela no OHQND é a alegria de filmar. E foi engraçado ouvir você se referir ao filme lá na Mostra de Tiradentes como um câncer que ficou 30 anos contigo, porque ao mesmo tempo ele foi expurgado com alegria.
DC - Inclusive visualmente. O filme é muito cheio de cor. É um filme com amarelo, com azul...
Quando o filme recebeu o primeiro aporte, ele se abriu de forma mágica. Essa coisa de religiosidade tá na fronteira da coisa da magia. Primeiro eu tive uma formação católica. Mas depois tive uma formação materialista que nega a existência de qualquer Deus. E isso vem de leituras de filosofia e de literatura de gente muito brilhante, e uma delas era a leitura de Carlos Castaneda, falando desse caminho da magia, e dessa outra possibilidade de se relacionar com o mundo. E como eu estava me iniciando nessa coisa dos psicoativos, aquilo veio se encaixar como uma luva. O caminho inclusive deixava de ser arte... ser arte era um acaso. A grande arte é a do mago, que não precisa de platéia, de suporte, de equipamento. Ele faz a macumba dele lá no meio do mato, e muda a vida dele, muda a vida das pessoas. Eu tava lendo isso junto com Kardec, com astrologia, com Jung, com Freud, Dali, Nietzsche... essas coisas faziam uma salada que misturava materialismo com esoterismo, transcendentalismo...
FA - Era um processo selvagem de conhecimento.
Completamente
selvagem. Então isso me dava um leque de possibilidades
enorme. Porque se não dava por um lado, podia dar por outro.
E eu fui tateando esse mundo com uma reverência como eu
nunca tive. A minha irreverência é muito dirigida
à sociedade organizada, às instituições.
Não sou e não pretendo ser nenhum exemplo de irreverência.
Eu sou irreverente com quem merece. Eu não posso ser irreverente
com vocês, não tem porquê. Eu sou irreverente
quando as pessoas estão precisando sair do eixo... e eu
só faço isso quando eu acho que posso ajudar. Mas
eu sou profundamente reverente quando eu estou sozinho. Eu sou
profundamente reverente a uma figura como Luiz Paulino (n. do.
e: cineasta, e ator de OHQND - ao lado de Edgard Navarro
na foto acima), por exemplo. Ou profundamente reverente
a algumas verdades que soam como verdades - e eu nem sei se são
verdades. Mas por soarem como verdades, eu sou reverente às
pessoas que as dizem como se fossem verdade.
E aí eu passeio por todo esse universo
bem devagarinho, com muito medo. Até porque, quando eu
era jovem, eu tinha muita preguiça... não tinha
disciplina. Eu começava a meditar e terminava batendo uma
punheta (risos). Tem três Ms que são importantes
pra mim: a masturbação, a maconha e a meditação.
O primeiro já foi colocado no Eu me Lembro. O
segundo também. E o terceiro, que é o M da meditação,
eu não consegui até hoje. É um deslocamento
da percepção, como uma pré-Ciência.
Um conhecimento ontológico. Eu busco isso. Até agora,
o cinema tem entretido a minha alma, de modo que eu ainda tenha
um santo a esculpir. "Mais um santo a esculpir é o
que lhe vale pra evitar que o rancor suas ervas espalhe",
que foi a frase fundamental quando eu ouvi o Milagreiro,
do Djavan. Foi quando tive um insight pleno que eu tinha que abandonar
o projeto que eu tava tocando e me dedicar novamente ao O
Homem que Não Dormia, porque tinha chegado a hora
dele. Porque agora eu tinha a idade, o conhecimento, a estrada
que eu precisava pra estar à altura deste tema.
FA - E como foi perceber isso e dar continuidade tanto tempo depois do nascimento da ideia original?
As coisas começaram a chegar de uma forma muito mágica. Eu tive surto psicótico criativo. Os diálogos eram como se eu ouvisse vozes. Então eu sou, nesse sentido, um cavalo. Não era meu. Como cineasta, estou muito mais para um feiticeiro... a minha macumba é esta, é fazer estes filmes deste jeito. Racionalmente, talvez você não consiga fazer algumas ligações ali... tá tudo em linguagem cifrada, porque o filme quis ser feito dessa forma. Ele não quer ser hermético. Agora, existem signos lá...
DC - Como o enforcado, do tarô.
Como
o enforcado. Eu conhecia de algumas leituras, até superficiais,
de manuais de astrologia. Mas aquilo pra mim é um arquétipo...
aquilo faz um sentido, mesmo se dito como em uma brochura, em
um manual. Foi isso que ajudou o Superoutro, por exemplo,
a ser o Oxumarê. Eu cheguei no Oxumarê por um livrinho
de merda. É um conhecimento meio acidental, e aí
quando as pesquisas precisam ser aprofundadas, eu aprofundo. Tem
um livro do Jung, Memórias, Sonhos e Reflexões...
não é um livro teórico. É um livro
de confissões. E a primeira frase do livro era: eu sou
a história de um inconsciente que se realizou. Eu tinha
28 anos e desejei isso ardentemente. Hoje eu digo que estou quase
realizado no meu inconsciente. Quando isso acontecer, talvez eu
não tenha mais filme pra fazer.
DC - A gente começou falando da espiritualidade, mas desde seus primeiros filmes há uma predominância do corpóreo. Da entrega do corpo... da exposição do corpo, que sempre foi muito forte.
Tem a ver com essas leituras, de Freud e de Dali,
naquele momento. Freud me dava uma base teórica, e Dali
me dava essa coisa do artista que era a criança que cagava
nas gavetas da mãe. O Rei do Cagaço é
filho desses dois, desse encontro. E a minha experiência
na época, com macrobiótica, com a maconha, com essas
leituras, tinha a ver com o meu corpo, os meus cheiros, o meu
suor... o meu corpo era o meu legado mais elementar. E eu via
que as pessoas ainda tinham um bloqueio que eu tive antes, quando
eu era adolescente, que existia por conta da mentalidade castradora
de uma família pequeno burguesa. Então eu queria
lidar com essas excrescências, essas secreções,
que eram essenciais. Eu tive idéia de fazer O Rei do
Cagaço quando eu liguei essas duas pontas.
FA - Você fala de esoterismo, de espiritualidade, de transcendência, mas, ao mesmo tempo, o cinema é uma prática material que demanda uma disciplina...
Rigorosa. Tem um lado pragmático que a empresa assume e os outros técnicos assumem, que me ajuda tremendamente com isso. E tem um outro lado meu de conseguir ter disciplina, de acordar muito cedo, de fazer meu dever de casa, de estudar, de trabalhar junto com os atores... de ser careta, completamente careta. Porque eu tenho um compromisso que transcende essa coisa pura e simples do mercado, ou do público, da platéia. Tenho um compromisso com um universo mágico e ele não quer que seja feito de outra forma.
DC - Ser careta, de certa maneira, é um tributo a isso.
É um tributo a isso. É uma reverência.
O Bispo do Rosário que fala: "eu sou um trabalhador
braçal a serviço de forças ocultas".
E eu me sinto, em certo sentido, muito assim. Eu só não
fui como o Bispo em perder um certo contato com uma lógica
que eu consiga articular...
JG - Mas Bispo tinha uma lógica própria muito sólida e muito rica também.
Muito rica. Mas ela não articula com a lógica do outro. O louco é aquele que acreditou tanto na sua própria fantasia que passou a achar que ela era verdade. Eu sou fanático pela lógica dos loucos, mas eu articulo ela de forma que a gente possa lidar...
JG - Na verdade, você se coloca no lugar de fazer o contato entre as duas lógicas...
Com certeza. Eu sou muito reverente aos mendigos, aos loucos, aos viados, aos travestis, às putas. Às pessoas perdidas da noite. O meu próximo filme vai lidar diretamente com esse universo, na noite de Salvador.
JG - E como é a sua rotina no set? Você já vai com tudo pronto? Tem muita mudança durante a filmagem?
No caso do OHQND, algumas vozes já
chegavam pra mim trazendo pérolas que eram irrefutáveis.
Aí não tinha o que mexer. Por outro lado, eu não
achava que tinha que ficar tudo muito amarrado. Algumas coisas
que ficaram soltas contaram com a contribuição do
acaso, com a contribuição dos atores, para dar algo
que fosse mais espontâneo. Em alguns casos, eu deixava correr
solto, para permitir que esse acaso viesse. Em outras, não,
eu fazia questão de uma inflexão, e era muito rigoroso,
porque às vezes o ator estava em uma viagem dele, que não
era a do filme. Às vezes eu pedia que os atores cantassem,
e uma das canções do filme veio de um dos atores.
Depois eu fui pesquisar e era uma canção dos Sem
Terra, desse bando de famintos sem chão e sem bandeira
vermelha... é a canção que eles cantam durante
a ocupação, e isso tinha tudo a ver com o filme.
Um
dos grandes signos que talvez não tenha sido muito bem
aproveitado no filme é a ruína, que por décadas
foi um lugar podre, amaldiçoado pela presença de
um capital enterrado de um Barão que representa uma aristocracia.
E aquele lugar agora vai ser ocupado pela vida, porque tem uma
mulher que está amamentando o filho, tem fogo na cozinha.
Isso é uma revolução muito importante que
seria, eu diria, glauberiana... muitos dos cineastas
do Cinema Novo estavam preocupados com essa questão social,
e ali é meu tributo a esse cinema engagé.
Como não é a minha missão trabalhar esse
cinema, ele vem ali como uma pincelada.
JG - Ao mesmo tempo, é uma conexão com uma tradição muito específica e muito rica, mas que vem por uma chave que, por algum motivo, ficou um pouco fora de moda no cinema brasileiro.
Esse é um filme antigo, no sentido de que é eterno. Você fala de moda, mas eu tenho essa dimensão do eterno. Tá fora de moda mesmo, mas a moda não interessa à arte de um modo geral. Ao mesmo tempo, eu tenho um lado prático de querer fazer carreira, que é um lado com certeza menos nobre, mas que se impõe, porque é relativo à própria sobrevivência. Eu quero que aquilo faça sentido pra quem vai assistir, porque é isso que dá a liga, é isso que faz o filme se comunicar e se completar. Isso sempre foi assim pra mim.
FA - Agora, alguma coisa mudou, que eu acho que esta entrevista, a retrospectiva na Mostra do Filme Livre e a repercussão do filme em Tiradentes, por exemplo, apontam. O Edgard Navarro deixa de ser o iconoclasta marginal e se torna, de alguma forma, uma figura que é referência. Como é isso pra você?
É uma situação muito nova.
Teve uma retrospectiva em 2001 no Festival do Rio, e pra mim foi
uma homenagem de grande importância também. Mas dez
anos se passaram, e isso não mudou muita coisa no meu cotidiano
pra fazer os filmes. É sempre uma dificuldade muito grande
de aprovar os filmes, mesmo depois de ganhar prêmios...
você tem que provar que o filme vai ser interessante. No
dia que eu fui fazer o pitching do OHQND era 28 de Novembro.
Quando eu terminei o Superoutro, também foi no
dia 28 de Novembro. O Eu me Lembro estreou também
no dia 28 de Novembro, em Brasília. E aí, no final
do pitching, quando eu já não tinha mais o que falar,
eu falei: "eu não sei pra que o filme serve, se ele
vai servir pro mercado, porque eu estou conectado a outras coisas.
Mas eu acredito muito no filme e estou completamente entregue
ao processo. Agora, se isso não basta, eu queria dizer
que o projeto tem um aliado muito importante que é o Espírito
Santo. Ele me soprou algumas coisas, e tem uma coincidência
que vocês deviam saber: hoje tá fazendo dois anos
que o Eu me Lembro ganhou aquela quantidade de prêmios
em Brasília. Isso me parece que é o Espírito
Santo querendo dar um recado pra vocês. Ou seja, se vocês
vão me reprovar, a reprovação não
é a mim... vocês vão se entender é
com o Espírito Santo!". (risos) Mas eu não
coloquei como ameaça. Eu tô contando aqui e parece
uma coisa hilária, mas lá foi uma coisa sincera.
Mas
voltando à sua pergunta, eu fico muito feliz de estar sendo
reconhecido em vida, porque muitos não são. O tamanho
desse reconhecimento é indeterminado pra mim. O que eu
sei, e que foi dito pra mim quando eu tive a inspiração
pro O Homem que Não Dormia, quando eu tinha 27
anos, foi dito pra mim que quando eu colocasse esse filme na tela
o meu tesouro viria pra minha mão. Eu tive muita pressa
em fazer esse filme, queria fazer de qualquer jeito. Esses 32
anos que se passaram foram muito importantes para que eu me tornasse
quem eu tinha que ser: o barão amaldiçoado. Eu escrevi
pra Jofre Soares fazer, sem saber que eu é que era o barão
amaldiçoado!
Quando a gente terminou o filme, eu fui muito
confiante pra uma exibição lá na Bahia, e
ela foi muito frustrante. Muita gente saiu do filme sem querer
falar, porque tava incomodada. Muita gente gostou também,
percebeu que tinha algo bacana ali. E teve gente que detonou o
filme, dizendo que era a pior coisa que viu na vida, que eu tinha
perdido completamente a mão: "Edgard Navarro está
acabado". Brasília era um teste mais importante, e
o filme ganhou um prêmio secundaríssimo e algumas
críticas elogiosas, outras menos e outras que detonaram.
Mas eu fui adiante. Aí, antes de Tiradentes, ele vem pra
Semana dos Realizadores e foi uma primeira redenção.
Como a platéia entrou bem no filme! Ela ficou na sintonia
da farsa. Então esse tesouro que o filme tem pra me dar
na verdade vem bem aos poucos, e estou recebendo ele aos poucos.
DC - Edgard, eu queria puxar novamente a sua veia cinéfila e saber qual a sua relação com isso hoje, e se você vê outras figuras hoje que produzem um cinema que tenha relação com o seu.
Eu
acho que os primeiros amores da vida da gente são indeléveis,
s ão os que ficam para sempre. Alguns filmes ficaram num
panteão da eternidade desta arte, e eu certamente não
tenho mais essa propensão ao encantamento, que eu tinha
dos 16 aos 26 anos, mais ou menos. A impressão que eu tenho
é que nenhum filme vai mais fazer comigo o que Amarcord
(foto) fez, o que Teorema fez, ou Dersu Uzala,
ou O Fantasma da Liberdade... Herzog, Wim Wenders...
quer dizer, tem uma faixa aí de 1968, com Teorema,
até 1988, com Asas do Desejo. Mas por exemplo,
eu vejo Tão Longe, Tão Perto, que falam
tão mal, mas eu sinto o mesmo encantamento. Wim Wenders
me toca como eu acho que nunca vai deixar de tocar. Ele é
um dos meus faróis.
Eu assisti recentemente, fora do tempo, Onde Dormem as Formigas Verdes (n. do e.: Edgard Navarro provavelmente se referia a Onde Sonham as Formigas Verdes, de Werner Herzog). É genial. Eu quero esse cinema. Eu não sei onde ele está acontecendo. Provavelmente ele está acontecendo. Mas eu não tenho agora a mesma disposição pra buscar, pra procurar... porque parece que essas coisas existem, e elas repetem uma verdade só. É como se elas estivessem dando uma outra badalada no sino, mas o diapasão é o mesmo.
FA - E o sino você já ouviu...
Eu já ouvi. Então é um outro filme que vai falar do mesmo tema, com brilhantismo, com leveza, com luz, com beleza... isso me interessa pra caramba, e se ele chegar eu vou sair agradecido do cinema. Mas eu não fico buscando mais. Não tenho mais esse interesse pelo cinema em si. O cinema, como a arte de um modo geral, é um meio. É um transporte para se chegar a lugares do espírito. Estados de espírito. Então com certeza eu vou estar atento a filmes como Poesia, por exemplo, um filme que eu vi, que eu não sei se é coreano...
JG - É coreano.
FA - Do Lee Chang-dong.
Pois é, eu nem decoro mais os nomes dos
diretores. Hoje não tem importância mais. Não
tem importância o meu nome, porque a arte com assinatura
é uma coisa burguesa. O que me importa é aquele
filme que me faz chorar, que me comove, que me enleva, que trata
da violência daquele jeito. Aí quando eu saio do
cinema desse jeito eu fico "ah, tô ficando velho...
tô chorão". Eu tô vivo. Esse é
um cinema que me interessa. O cinema que busca uma linguagem,
uma outra forma narrativa, esse é muito interessante pra
formação das novas gerações, porque
elas são sempre muito inconformadas e é bom que
seja assim. Eu já fui assim. Mas hoje eu estou conformado.
Eu me conformo com um certo sentimento de que estou fazendo o
que posso, e que cada um faça o que pode. E que algumas
coisas podem ser transformadas e outras não...
FA - É uma resignação, não?
É uma resignação. Uma resignação muito doce. Um olhar mais maduro pro mundo. Não tem jeito, eu não tenho mais a quantidade de testosterona que eu tive um dia... a mesma disposição pra luta. Aliás, quando eu tinha, a minha luta não era nas passeatas. Era um discurso anarquista, escatológico, individualista... porque eu acreditava que essa revolução começava no indivíduo. Essa agonia existencial que eu experimentei muito cedo, e as minhas sequelas todas que vieram em seguida, me fazem hoje ser essa figueira que se desfolha e que não pode dar frutos.
Maio de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |