A Erva do Rato, de Julio Bressane (Brasil, 2008)
por Paulo Santos Lima

A busca pelo extracampo

As imagens-relâmpago de Julio Bressane dirigindo A Erva do Rato, intercaladas aos créditos finais do filme, aparecem em freqüência mais caudalosa que em seus filmes anteriores. São imagens espectrais, também, quase como se Julio, Alessandra Negrini, Selton Mello, câmera, equipe e aparato estivessem fundidos nas vísceras do filme, como um composto único. É como se o cineasta quisesse, extraordinariamente, reforçar a patente autoral de seu novo trabalho. O que seria, em princípio, redundante para um cineasta cujo cinema é único no mundo, mas não para um filme de Bressane que adota uma câmera que passeia mais pelo espaço, quando não decupando-o com o próprio movimento, além de uma dinamização na montagem que acaba diminuindo um tantinho o valor do quadro que o recorte meticuloso e a extensão do tempo de plano sempre alimentaram. De modo algum é uma ruptura, pois a essência do cinema de Bressane continua intocada, com sua idéia de interceptar a superfície e deixar em jogo a representação simbólico-metafísica dos objetos. Mas a câmera, aqui, ganha status aos nossos olhos – pelo movimento e outras pequenas diabruras.

Com essa câmera mais livre e sapeca (num filme com bastante senso de humor, diga-se), o desfoco, imagem-pânico para quem busca certezas formais sobre o mundo, consta já no primeiro plano de A Erva do Rato com grande potência. Nessa mesma tomada, o foco chega logo ao socorro dos olhos “científicos” e mostra o imponente oceano batendo como praia na borda da terra. Sem corte, uma panorâmica à esquerda, 180o completos, termina na imagem de um cemitério com sua arquitetura de signos mortuários. Entre o ponto de partida e o de chegada da câmera, temos algo como o movimento e o estático, ou a amplidão de significados do mar versus a morte como única interpretação possível de ser colhida daquelas lápides.

Não é um início austero; pelo contrário, essa tomada se faz com humor, pura ironia, porque pouco importa a leitura das imagens, sempre bastante aberta e incerta, mas sim o procedimento – a câmera de Bressane “procura”, efetivamente. O protagonista, um homem que é meio arquivista do conhecimento factual-positivista, não é a câmera, mas usa uma. Ele, no caso, quer sair do amorfo e encontrar a forma interior, ou, a forma e imagem da verdade. Neste cemitério, ele (Selton Mello) encontra uma mulher (Alessandra Negrini), que, como as de Machado de Assis (autor cuja criação é vertida para este longa), esconde mistérios sob a superfície, como se houvesse entre a imagem física e a imagem mental sugerida uma dissimulação. Engana-se. E engana-se menos o olhar e mais o que ele projeta mentalmente. Como o rato que surge na casa deste homem, escapando-lhe acintosamente.

Alessandra Negrini, no caso, merece comentário à parte. Julio Bressane, com esse seu cinema de imagens bem definidas, de traços delineados, formas e cores meticulosamente disponibilizadas no plano para nossos olhos, tem nessa atriz a síntese desse processo de deixar à suspensão os sentidos, cognições, interligações e sensorialidades que fazemos a partir das imagens exatas e seus signos. Na tela, Negrini, em sua beleza pan(orâmica) e absoluta que remete a todas as estéticas da história da humanidade (da antiga grega à recente latina, da pureza das linhas poéticas à força das estéticas miscigenadas materialistas, da pré-história ao fim da história), remete a vários desejos, questionamentos, ímpetos, sedes e fomes por parte de quem a vê. Um corpo cujas formas criam sulco permanente no cérebro, mas que ainda assim faz lembrar do que é interior e superior a ele: o desconhecido, a forma indescritível... o desfoco. Com a luz de Walter Carvalho, o que surge na tela é a carne e a pintura, algo entre a experiência direta e a representação pictórica. Um convite para a aventura do descobrimento.

Selton Mello não é uma presença de baixa relevância. Ator magnífico, cuja força está, sobretudo, na voz e no rosto (para o drama e para o riso), em A Erva do Rato ele é quase uma ação, uma força, um fazer algo, um ilustração de um procedimento. Ele não é a câmera do filme, mas age como ela, ao procurar o foco do desfoco do mundo. Essa arquivação de materiais coletados, por meio do texto e da imagem, que ele faz com o auxílio de sua mulher, não surte num novo conhecimento. Não é à toa, portanto, que ele use uma máquina fotográfica: utensílio que seqüestra as imagens do mundo e as coloca num aquário quadrangular, como as enciclopédias fazem com a experiência humana, congelando-a nos factual histórico. Assim, quando ele chega à vagina de sua amada, o que ele tem é apenas uma vagina.

Será o rato invasor quem rasgará as fotos e tumultuará as regras do casal. O rato, claro, é um item bastante simbólico e de significação mais direta à idéia de instinto e pulsão sexual, mas ainda assim é um meio para que o filme chegue a outro patamar: quando é morto, o que vemos é simplesmente um rato, sua cauda, seus bracinhos, sua agonia física. Por esses meios, não se chega além dos ossos. Daí a mulher, já morta, mais nua que nunca em seus ossos, ser ainda fotografada nas mesmas posições. O que se tem é o oco. O que nos resta, talvez, seja a referência de antes: a pele e os pêlos daquela mulher. Está claro, aqui, que mais uma vez no cinema de Bressane o que está em jogo é esse terreno entre o objeto e a nossa percepção. Por isso os planos são bastante trabalhados, pois há uma força invisível no extracampo, naquilo que está fora do quadro, mas que ele no provoca a pensar. Machado de Assis, por exemplo, é outra força eterna que pode ser vista às sombras em cada fotograma do filme.

Tudo isso é quase um jogo entre visível e invisível, descritível e indescritível, e por isso é bastante irônico o quanto os filmes de Bressane nos fazem refletir filosoficamente, partindo sempre de itens bastante concretos e discerníveis: a história antiga, Roma, a criação musical, a faca e o sangue, a cor pintada numa parede, a mesa que apóia os corpos cansados, o espaço confinado de uma sala, o lençol, César, o deserto bíblico trazido pelo sertão nordestino, Miguel Falabella, Helena Ignez, Alessandra Negrini. A Erva do Rato é talvez o grande filme-tese, ou filme-procedimento, de Julio Bressane. Filme no qual os procedimentos (sobretudo os da câmera que busca a “imagem certa”) estão mais escancarados nos planos. A última imagem, pré-créditos finais, mostra de fora a casa do protagonista, enterrada (ou enterrando-se) na crosta terrestre, afundando enquanto ele continua com sua máquina fotográfica a capturar imagens do esqueleto de sua mulher, indo mais e mais fundo em busca de uma explicação para o que está aos seus olhos. E, pegando-se os planos inicial e final deste soberbo longa, está claro: a busca pela essência primeira das coisas é uma aventura arriscada, de uma imersão total que acaba por nos levar de volta à única essência conhecida – a da matéria, a única que pode ser vertida em imagem cinematográfica. O resto só pode estar no extracampo.

Outubro de 2008

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