Espelho Mágico (Espelho Mágico),
de Manoel de Oliveira (Portugal, 2005)
por Lila Foster

O teatro da vida

O cenário de Espelho mágico é uma casa de campo aristocrática portuguesa na qual será exposto o drama de Alfreda, uma rica mulher obcecada pela vida da Virgem Maria. Alfreda insiste na sua semelhança com a Virgem e se apega a figura de um professor chamado Heschel cuja interpretação afirma que Maria, além de despertar um enorme desejo entre os homens, seria também de origem rica. Alfreda espera uma possível aparição da Nossa Senhora, na tentativa de doar algum sentido para a sua existência.

Participando deste processo de identificação está Luciano, um jovem recém saído da prisão contratado como um “assistente”. Acompanhando Alfreda nas suas divagações e passeios pelo campo, Luciano se revela inquieto e sensível a discussões profundas (como já demonstrava o seu diálogo com o diretor da prisão). Ele questiona como uma mulher rica e bela pode se entregar de tal forma a esta obsessão se descolando cada vez mais da realidade. Existe fascínio e desconcerto pela sua fé que a distancia cada vez mais da vida. Diante da possibilidade de aplicar um golpe na patroa fragilizada (que poderia ser interpretada também como uma tentativa de curá-la), Luciano planeja junto com seu amigo Filipe Quinta, afinador de piano e falsário, a contratação de uma atriz para a simulação de uma aparição.

Sobre a teatralidade do cinema de Manoel de Oliveira muito pode ser dito e experimentado. No percurso de sua carreira a relação íntima e constante entre o cinema e o teatro pode passar pelo diálogo mais direto entre as duas artes, como em Benilde, onde ele faz questão de mostrar o próprio dispositivo teatral para assim se tornar mais cinema; pela encenação da fantasia dos loucos apresentados em A Divina Comédia; pelo teatro da história do Ocidente em Um Filme Falado. Ou ainda nos seus atores que recitam mais do que falam e nos enquadramentos que apresentam a cena para o espectador na sua integridade temporal e espacial O que se percebe mais claramente em Espelho Mágico é que, antes de se tratar de um empréstimo de códigos e convenções, Manoel de Oliveira ama o teatro porque, em essência, considera este mais próximo da vida.

Essa proximidade se dá em duas instâncias. A primeira é a vida considerada como uma encenação no teatro maior da cultura, da tradição e da história. Na vida, o homem está inserido no mundo como um ator que lê e recebe os textos culturais a sua maneira. No cinema de Manoel de Oliveira, a interpretação carregada e teatralizada pretende afastar qualquer possibilidade de falseamento, pois o seu princípio é evocar este diálogo do homem com o mundo. Estamos sempre diante de atores que não fingem, mas que trabalham diante de nós: a forma pausada de recitar o texto, a disposição cênica, a relação dos olhares com a câmera. O princípio da arte não será a falsificação, mas sim, a representação da vida.

Outra particularidade do teatro é a presença em ato da representação para o espectador, ao contrário do cinema que tem a abstração como fundamento. Reservada esta magia para o cinema, será neste terreno que o diretor circulará. O artifício não estará em função da transparência nem na construção de uma realidade como reflexo do que os olhos percebem, mas do que podemos apreender de um sentido maior do que é a vida, em sua verdade abstrata.

Encarando a morte como caminho para a santidade, Alfreda vive, mas se mantém desligada do mundo. Nem uma volta a Veneza, viagem lembrada pelo marido como inesquecível para ela, será capaz de retirá-la do seu estado de espera. O caminho da rememoração em Veneza é sem dúvida uma das seqüências mais belas do filme: uma câmera subjetiva que simula um olhar que vê, mas não é capaz de apreender o que está sendo visto; um olhar já morto, porque sem memória.

Mas, apesar da morte o que se configura no final é uma ode à vida.  A revelação sagrada não acontece, somente pequenas revelações mundanas: a beleza do sol refletido na água, o  misticismo de uma criada, a formação de um casal, o amor pela música, a memória da infância, o abandono do passado. Em meio a um diálogo, a imagem semi-documental de uma criança naturaliza a morte como um ciclo da vida e nada mais. E Manoel de Oliveira constrói mais uma vez um cinema de essencialidades da forma mais simples e bela.


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