Esses Moços, de José
Araripe Jr. (Brasil, 2004) por Cléber Eduardo
Filme e personagens em duplo deslocamento Esses
Moços é uma surpresa na idéia de contemporâneo no cinema brasileiro. Surpresa
menos pelo êxito de sua proposta e mais pelas próprias características dessa proposta,
a uma primeira vista deslocada da contemporaneidade por conta de uma ingenuidade
parcialmente planejada no enfoque sobre sua fabulação social, mas também em razão
de uma concepção visual sem a “pegada” da atualidade. O tom e a forma de suas
imagens são pré-modernas – ou, para ser mais rigoroso, situam-se ali na fronteira
com a modernidade cinematográfica brasileira. Filmado há
mais de cinco anos, interrompido por problemas de produção, Esses Moços
pode dar essa impressão de experiência no túnel do tempo, retornando a um momento
histórico, no começo dos anos 50, no qual alguns diretores saem dos estúdios para
a rua, ainda sem se sentirem completamente à vontade no novo ambiente, mas empenhados
em procurar respirá-lo. No entanto, em relação a essa matriz histórica, há atualização.
Esses Moços salienta a ficcionalização da realidade empreendida na fronteira
com o moderno por filmes-referência como Rio 40 Graus e Rio Zona Norte,
de Nelson Pereira dos Santos, ou mesmo pelos primeiros longas de Roberto Pires
(A Grande Feira e Tocaia no Asfalto), esses já adentrando os anos
60. Seu enfoque difere-se por procurar perfumar um pouco o mau cheiro do mundo
enfocado. Pouco interessa ao diretor baiano José Araripe
Jr, de 47 anos, organizar os problemas do mundo para onde sua câmera aponta, de
modo a direcionar a lente para as causas da degradação humana. Interessa ao realizador
usar esses problemas para inventar um mundo com uma lógica fictícia, na qual a
degradação torna-se matéria-prima para uma poética, não para um exame das estruturas
produtoras da degradação. As duas meninas de rua à frente da narrativa (Chayenne
dos Santos e Flaviana Silva), uma doce, outra amarga, não são ilustrações de crianças
de rua, na linha pretendida pelos filmes que ambicionam ser “ciências humanas
do cinema”, tomando a parte pelo todo, mas imagens de duas crianças de rua DO
cinema, com uma lógica dramática a direcionar os acontecimentos – sem necessariamente
ser documento de uma lógica social, tampouco uma reflexão sobre ela. Há
talvez um desejo de se tomar a parte pelo todo, sim, de forma genérica, mas esse
esboço de síntese abre mão do efeito cópia/imitação do real. A experiência das
personagens nos é apresentada claramente como fruto de uma mediação entre a realidade,
a fabulação dessa realidade por meio do olhar do diretor, e nossa percepção diante
da representação assumida como tal. Esse olhar assumido como olhar e construção,
sem com isso flertar com a auto-reflexividade, já podia ser encontrado no curta
Mr. Abrakadabra, trabalho de Araripe mais cercado de elogios, no qual os
efeitos lúdicos das operações cênicas (no caso, de um mágico), em ultima instância,
repõem a vida onde ela parecia extinta (por conta de artifícios ficcionais). Está
claro que o diretor, no curta e nesse seu longa de estréia, assume-se como fabulador.
O investimento na imaginação, crê, faz bem ao homem. Não deixa de ser essa a função
no filme de um velho aparentemente cego e com problemas psíquicos (Inaldo Santana,
ator de Liz e Katazan, curta de Edgard Navarro), adotado como avô
pela irmã caçula – em parte por uma sintonia entre duas gerações vivendo a experiência
do deslocamento (físico e social), em parte pela necessidade de reinventar a vida,
sem deixar de se estar preso ao que ela tem de impossível de ser reinventada.
Essa ambição de conciliar a leitura da realidade com a invenção
de um mundo fictício, absolutamente legítima e até desejável, resulta numa mal
conduzida tensão entre o contato com as individualidades e a conexão dessas individualidades
com seu contexto, ora procurando uma aproximação mais realista (em sua observação
do ambiente da Cidade Baixa), ora procurando esquecê-la para se firmar como fabulação.
O próprio título carrega esse hibridismo: refere-se mais a uma música, de Lupicínio
Rodrigues, que ao filme em si mesmo. Araripe Jr perde-se em sua aparente tarefa
de fundir imaginação com imagem-nação, já que, apesar de estar bem
situado em Salvador, não parece referir-se a especificidades locais. O local é
reflexo do nacional, porque, se a baianidade está lá na paisagem e no sotaque,
a condição marginal é mais ampla. Há um desejo de “fazer
de conta” sem perder o chão motivador do “faz de conta”. Esses Moços quer
subverter o código do cinema social, mas não se livra dele inteiramente. O preço
da contrapartida social na fabulação, ou a militância pela fabulação em um universo
social dramático, colocam teto tanto no fabular como no social. Não se questiona
aqui a pertinência dessa fusão, mas as consequências das estratégias empregadas.
A procura por um lirismo da margem, amplificada pela figura lúdica do velho cego,
acaba por atenuar o efeito da margem, transformando a condição social das meninas
em parte de uma brincadeira de criança. O compromisso com certa doçura esvazia
o drama da experiência filmada, inclusive a revolta e a malandragem da irmã mais
velha, que, ao contrário da caçula, não deposita nenhuma fé no humano e age com
a consciência da orfandade (ampla), reagindo a ela sem sinais estereotipados de
bondade infantil. Sua ira e ceticismo são amaciados pelo tom suave – e deslegitimados,
em última instância. A indignação, parece concluir o filme, é negativa. Não
há algo de esquerdismo morno e conservador nessa operação? Toda a jornada empreendida
pelos personagens tem como solução final o confinamento do “louco” e a domesticação
da revolta da irmã mais velha. A busca da ordem está no arquivamento dos efeitos
da desordem. Prende um, amansa a outra, tudo fica bem. Esses Moços insere-se
em uma crescente tendência da produção brasileira de valorizar a capacidade do
pobre para se virar e dar a volta por cima. É algo politicamente avesso a uma
resignação diante do determinismo econômico, mas que, inevitavelmente, elabora
um discurso da vitória pessoal paralelamente à aceitação da desordem social. Não
importa mais a questão estrutural a qual as duas personagens estão conectadas
se elas forem contempladas pela solidariedade da gente simples e tiverem a chance
de recomeçar a vida em um ambiente menos hostil e urbano. O pobre resiste, muda
sua rota sem perder a resignação com sua condição, mas termina feliz. Uma
vez dado esse tom conciliatório, sabe-se lá se voltado para crianças, adolescentes
ou adultos, nota-se uma carência de material dramático. As situações não mostram
potencial para se desdobrarem, ou se desdobram um tanto forçadas, quase como necessidade
de dar conta de um dado de roteiro, sem muita preocupação se esse dado de roteiro
produz uma crença na situação – o mesmo valendo para a encenação. Ambos os problemas
manifestam-se, exemplarmente, na intriga criminal plantada na história: o assassinato
testemunhado pelas irmãs, uma premissa dramática mal colocada/desenvolvida, e
a representação caricatural do assassino, que resulta em banalização de sua figura.
Não que na Cidade Baixa, a região onde tudo se passa, o testemunho de um crime,
assim como um criminoso caricato, não possam existir. Na codificação da imagem,
porém, não carregam o efeito da verdade. Não é um caso de
exigir verossimilhança, mas capacidade de fazer o inverossímil tornar-se crível
por uma operação audiovisual, independente da maior ou menor viabilidade da situação.
Por mais subjetiva que seja essa percepção, uma das fragilidades do filme está
em não dar conta de seu hibridismo, que reivindica crença em uma fabulação e na
relação do fabular com o real, mas não produz essa crença no fabular sem gerar
o esquecimento da operação de construção. Pode-se perceber isso no empenho da
narrativa em nos lembrar de seu desinteresse pela imagem mimética como imagem
do mundo representado e em sua inacapacidade de romper com esse mimetismo quando
flerta com uma leitura de universo social. Em parte, isso é proposital, hibridismo
programático. Em parte, acidente, hibridismo involuntário. O tom lúdico, que quebra
o realismo, é programado. As gaguejadas, das atuações e da própria mise-en-scéne
(que lembra a existência de uma operação cinematográfica), parecem fruto da dificuldade
de manter certa transparência. Rúidos na percepção, portanto. Embora
se busque o naturalismo e a espontaneidade das duas atrizes mirins não profissionais,
com altos e baixos nesse registro, vê-se eventualmente o esforço de ambas para
compensar a inexperiência. Os traços de atuação vêm à tona e criam o tal efeito
de híbridismo involuntário. Se parece até um tanto óbvio que, em Esses Moços,
recusa-se a “imagem profissional”, ou mesmo uma noção equilibrada de decupagem,
de construção de cenas e de encadeamento de planos, não se pode afirmar que essa
recusa carregue energia, como se vê em alguns dos melhores filmes brasileiros
desde pelo menos Rio 40 Graus. A negação de um padrão cênico e de fluxo
visual, nesse caso, somente salienta uma certa limitação expressiva (mais que
econômica). Limitação que não é, necessariamente, de José Araripe Jr (também diretor
de Pai do Rock, um dos três episódios de Três Histórias da Bahia),
mas de suas escolhas aqui. Sua busca do autêntico parece passar por uma aproximação
com a impressão de amadorismo, de uma simplicidade situada entre o clássico de
unhas descascadas e o moderno sem unha para arranhar. Araripe
Jr filma como quem deseja situar-se, ao menos assim parece, na primeira infância
do clássico e do moderno. Não parece ser casual a figura do trem, com sua janela
como tela e seu movimento como travelling e panorâmica, que remete ao pré-cinema
e ao primeiro cinema, ainda na pré-história da posterior narratividade oficializada
por Gritffith. Se o trem é a passagem de um espaço geográfico para outro na narrativa,
de um mundo cão para uma outra possibilidade de mundo, seu sentido de origem do
cinema está impregnado nas imagens, como se Araripe Jr partisse lá de Edwin Porter
(O Grande Assalto ao Trem), no alvorecer do século XX, e saltasse até Rodolfo
Nani (O Saci) ou Nelson Pereira. Os recorrentes travellings laterais,
de avanço e de recuo em relação aos atores expressam essa passagem para uma câmera
engatinhando do começo do narrativo para as fronteiras com o moderno – mas um
moderno ainda sem chutar as regras e um narrativo esforçado para cumprir as tarefas
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