Estamira, de Marcos Prado (Brasil, 2004)
por Cléber Eduardo
A mulher, o lixo e o mito
Talvez desconfiado de sua própria autoridade como revelador de
verdades quaisquer (sobre pessoas, ambientes, momentos históricos),
o documentário em geral (e o brasileiro em particular) tem evitado,
em linhas gerais, colocar-se como uma postura do saber sobre qualquer
coisa. Isso ajuda a explicar, ainda que parcialmente, a necessidade
de se dar voz ao outro, em geral pessoas de vida modesta, não
midiáticas, que passam a exercer a tarefa de “sabedoria popular”,
modelada pelas experiências empíricas.
Senhora com distúrbios mentais, que vive de um
lixão na Grande Rio (Duque de Caxias, especificamente), Estamira,
em seus acessos nervosos, vocifera contra Deus, contra a alienação
dos seres humanos pela religião e pelos remédios (“dopantes”),
contra uma suposta sociedade de controle, estruturada para calar
a voz e os pensamentos dos rebeldes (ela). Em sua retórica irada
e em suas manifestações alucinadas, Estamira, sempre dizendo-se
a reveladora da verdade, demiurga consciente de seu grau de perturbação,
revela aguda coerência em suas análises intensas – uma marxista
naif com discurso messiânico. A proclamação da verdade
está com ela e, devido ao espaço dado à suas frases no filme,
há um interesse por essa verdade.
A verdade resgatada pelo diretor Marcos Prado,
na fala de Estamira, é a verdade desmistificadora das verdades,
sustentada pela desconfiança das falsas retóricas, dos mecanismos
produtores de ilusão, das religiões, do consumo, da publicidade.
É uma verdade empenhada em acordar o ser humano, tirar a venda
de seus olhos, com a força de uma crueldade ao mesmo tempo mítica
e iluminista, certamente medieval em seu espírito paradoxal, certamente
épica, poética e religiosa em seu ateísmo ritualístico, em sua
expressão verbal cifrada, em sua narratividade vomitada. Estamira,
o filme, transfere assim a “voz do saber” para o “discurso anômalo”
– mais autêntico, menos controlado, sem filtros ou coletes em
seu duelo com as feridas da vida. A franqueza permeada de ódio
é depositária de algo sagrado, com seu discurso não formatado
e não negociado com as convenções do pensamento dominante.
Existe algum tipo de ligação entre Estamira
e outros documentários recentes – A Pessoa é para o Que Nasce,
de Roberto Berliner, A Alma do Osso, de Cão Guimarães,
O Fim e O Princípio, de Eduardo Coutinho, e Moacyr Arte
Bruta, de Walter Carvalho. Temos nesses trabalhos aproximações,
de maneiras distintas, com figuras dotadas de certa “inspiração”,
vistas como seres especiais, que se distinguem por algum tipo
de anomalia (orgânica ou social). Esses seres, transformados em
personagens, carregariam em suas palavras (e em seu estar no mundo)
algum tipo de sabedoria autista, que os torna sagrados ou superiores
aos olhos dos realizadores. Talvez porque sejam vistos em outra
dimensão (etérea), menos contaminados pelas formatações de subjetividade
e mentalidade do capitalismo, mais capazes de serem originais,
porque pensam a partir da experiência empírica e não a partir
das representações das experiências. Registrá-los parece ser uma
maneira de preservá-los enquanto imagem, como se tenta preservar
espécies em extinção.
Só que, entre ver nessa figura humana apenas um
sinal de uma conjuntura social (saída fácil) e representar seu
universo real e imaginário como um mito, Marcos Prado opta pelo
segundo caminho, preferindo tratar o lixão menos como espaço sintético
de resíduos humanos, de margem do capital, e mais como cenário
medieval de uma subjetividade apocalíptica e fabular, que encara
o depósito de dejetos como ambiente de resistência (não de opressão
ou de abandono). Nesse sentido, Estamira, o filme, adere
a Estamira, a mulher fora do filme, saindo do registro de denúncia
para o registro do mito lírico. Pode-se até detectar algo da estrutura
social e cultural na vida de Estamira (como sua relação com o
sistema de saúde pública e sua paranóia com câmeras escondidas
– uma ironia com o espírito do observacional), mas não é a sociedade
que interessa a Marcos Prado. O objeto esculpido por sua narrativa
é a subjetividade verbalizada de Estamira, o funcionamento de
seu mecanismo mental, a força inquebrantável de sua resistência
e de suas convicções. Uma mulher que não se dobra.
Esse rumo torna compreensível a busca permanente
pelo enquadramento bem composto, pelos momentos de poesia com
o espaço putrefato, explícito nas imagens em preto e branco granulado
(primas do Nesse Mundo, de Michael Winterbotton). O filme
abusa dos efeitos obtidos na finalização (nos cortes, na música,
na função do som), na construção de uma atmosfera cinematográfica
que, em vez de captar o real sem filtros, apodera-se dessa realidade
enfocada para se estabelecer como obra pictórica. Estamira
não é estética do lixo, mas o lixo estetizado, tornado imagem
quase irreal, lírico em sua agressividade.
É verdade que esse lirismo, possível na imagem,
talvez seja inviável “in loco”. A imagem não cheira, não suja
os sapatos, não oferece riscos de doença, nem o perigo de, à noite,
promover um encontro entre nós e algum rato. Essas limitações
tornam possível o embelezamento plástico e a sedução de nossa
sensorialidade, protegidos contra o compartilhamento da experiência
vivida pelo realizador na captação. Embora ouça as verdades de
Estamira contra as falsas verdades, Marcos Prado não quer a imagem
verdadeira, chocante, cruel e desconfortável, mas uma verdadeira
imagem de cinema, com suas manipulações, formalismos e atenuações
da experiência real.
Estamos em um observacional calcado na performance
de sua protagonista-atração, em busca do espetáculo visual e narrativo
extraído da miséria social e da presença cênica de sua personagem.
Não vemos aqui uma escancaramento do encontro entre realizador
e a pessoa filmada, marca predominante da produção documental
brasileira, especialmente após Santo Forte, de Eduardo
Coutinho (certamente um filme-marco para o documentário dos anos
90-00). Essa opção pelo olhar sem o ponto de vista assumido de
quem filma, sem a experiência de quem é de fora do espaço filmado,
sem o choque de culturas e experiências entre diretor e personagem,
em alguma medida, já demonstra um objetivo estratégico de Estamira:
expor o resultado de um processo (sobretudo seus efeitos dramáticos-estéticos),
e não o processo pelo qual se chegou a esse resultado.
Para ser compreendido em seus procedimentos, Estamira
exige de quem o analisa uma reflexão sobre a ética da imagem,
de modo a não vetarmos a proposta do filme baseados em critérios
que, antes de serem estéticos, estão comprometidos com um programa
de proibições imposto ao documentário. Existe um desejo um tanto
voraz, e nem sempre coerente (do qual não excluo alguns de meus
textos), em relação ao estabelecimento de regras nessa atividade.
Parte da produção tem sido avaliada por meio de delimitações sobre
o “permitido” e o “proibido” na relação das imagens com pessoas
reais. Para que melhor se discuta o filme, é muito importante
evitarmos esse risco – ainda que não sem levá-lo em conta.
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