Estamos Juntos, de Toni Venturi (Brasil, 2011)
por Andrea Ormond
Otimismo de receita
Juntar uma penca de personagens solitários geralmente esconde a intenção de se colocar o espectador em um labirinto, tacar iscas para dentro da jaula e quem sabe, na melhor das hipóteses, deixá-lo absolutamente zonzo. Como um Jack Dempsey ou um Joe Louis, os braços medindo à distância a potência do golpe, aproximando-se até encaixarem a sonora patada no adversário. Nada mais aterrador do que um filme agitar a essência das coisas. Tocar no que é humano e, de brinde, fazer a festa no assoalho mental da audiência.
Na história do cinema brasileiro, São
Paulo vira e mexe foi utilizada como a "selva de pedra",
a cidade dos anônimos, gente que some, "é engolida
em tudo aquilo". A Meca da solidão urbana. Temos aí
um referencial que já não traz muitas dificuldades
de ser compartilhado, mesmo porque em 2011 a cultura nacional
se acostumou ao filão. Aparecem as milhares de janelas
nos prédios cinzas, o voyeurismo trôpego
de escavar a rotina do vizinho, ser imigrante, cair nas tentações
da noite. No macrocosmo, a tradição escolheu São
Paulo. No microcosmo, esses momentos são vistos em um punhado
de territórios, que mudam conforme se encoste o dedo no
mapa. Neste sentido, o bairro de Copacabana no Rio de Janeiro
tem o quê de alucinógeno: comerciantes persas reivindicam
chope entre tribos de babalorixás, idosos mastigam croquetes
antes de irem ao cardiologista. Quando voltam para casa, a rotina
se instala. O que parecia gregário torna-se constelação
de eremitas.
Estamos
Juntos, de Toni Venturi, roteiro de Hilton Lacerda, optou
por colocar a médica residente (Carmem), o amigo gay (Murilo),
o músico argentino (Juan) e uma ONG de sem-tetos no centrão
paulistano. O Copan, a pólis dentro da pólis, surge
no esplendor para abrigar o gay e o argentino - respectivamente,
DJ e violinista. O portenho refuga, não está nessas
de participar de convescote homoerótico, prefere manter
o bigode à moda antiga. Um morocho que não
escorregaria na Callao com Santa Fé, e tasca desde logo
uma linguada na boca roja da médica, para mostrar
a que veio. A médica, bastante próxima do DJ, sua
nobre confidente, a princípio parecia conduzir a trama
a um tosco triângulo, desajeitado, que o DJ tentaria quebrar.
Surrupiar o visitante do Mercosul para seu individual deleite,
afastando-o da concorrente.
Quanto à ONG, a estação da
Luz oferece o cenário. Metáfora clara, eixo do transporte
metropolitano - sobretudo da grande São Paulo, de baixa
renda -, marco das trajetórias diárias de milhares
de passageiros. A Luz divide paredes com o quartel-general do
grupo, exatamente o grupo que será responsável por
"mudar os destinos" de Carmem. O lugar que lhe trará
as cotas de socialização necessárias para
encarar o mundo. Entendam: Carmem precisa se descobrir, ter a
sacrossanta tomada de consciência. O que não acontece
per se, ao viver os problemas de moça isolada
na floresta de carros e transeuntes gélidos. Na prática,
Carmen precisa se submeter ao meio. Precisa ser vencida, no chão,
dobrada pelas circunstâncias. Agoniza enquanto não
o faz. Torna-se boa no momento em que começa a sorrir e
a abrir mão de rabugices que poderiam ter lhe trazido algum
charme.
Equipara-se,
portanto, o wit à dor. Por uma via semelhante
à da "terapia do abraço", equipara-se
inclusive doença física à falta de amigos
sinceros. A introspecção está condenada,
morgando no banco dos réus. H. L. Mencken diria um chiste
cabeludo para a garota mas, pelo jeito, amigos se formam em pouquíssimo
tempo e a psicossomática não pode parar. Logo, descobre-se
que o antídoto está no afeto. Afeto explícito,
incontrolável, alegria desconcertante. Suprassumo do otimismo,
o remédio acontece a partir da conscientização
social de Carmem. Algo que, por sua vez, se nutre daquela estratégia
recorrente de utilizar uma gangorra entre economicamente favorecidos
e desfavorecidos. Carmem - a doutora de classe média -é
dura, afasta o entorno. A ONG, não. É receptiva,
transformadora. E, nisto, terrivelmente homogeneizadora. Achata
as dimensões das personagens, os conflitos, à medida
em que purifica os que dela se aproximam. Afinal de contas, também
existem voluntários e sem-tetos tristes, desorientados,
ambíguos, invejosos. Independe do fato de jogarem partidas
de futebol, comandarem rodas de samba ou viverem juntos na comunidade.
Esta beleza e estas contradições são parte
do mesmo caos que o filme poderia construir.
Comparando-o, por exemplo, a Na Carne e Na
Alma, último longa-metragem - ainda fora do circuito
exibidor - de Alberto Salvá, observa-se um curioso fenômeno.
A história poderosa de Salvá, cheia de subterfúgios
e de entendimento sobre um casal, se perde em interpretações
abaixo da média. A fúria, a danação,
o amor possesso do protagonista viajam sem rumo, perdidos; não
são incorporados pelos atores da maneira com que foram
pensados. Em Estamos Juntos a atuação se
sobrepõe ao enredo. Leandra Leal (Carmem) tenta, puxa as
rédeas de um projeto que lhe cobra excessiva atenção
e que naufraga nos deslizes de fundo, substanciais. Constatar
que a felicidade assusta é o tipo de mistério que
envolve um cuidado imenso. E o oposto da felicidade, o vertiginoso
abismo, melhor deixá-lo quieto do que atear espuma no vulcão
que, se explodisse, avançaria caudaloso para o mar.
Julho de 2011
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