in loco - cobertura dos festivais
Estradeiros, de Sergio Oliveira e Renata Pinheiro
(Brasil, 2011)

por Fabian Cantieri

Nova estrada comum

Existe algo que diferencia Estradeiros do manancial de filmes contemporâneos com larga vontade de cair na estrada. O filme de Sergio Oliveira e Renata Pinheiro não se defronta com questionamentos existenciais por meio de um espírito errante, nem quer fugir de um espaço para sair livre e deliberadamente por aí, sem pretextos enraizantes. Estradeiros se diferencia à primeira vista tomando o olhar pra fora de si e voltando para o outro - quer entender aqueles que tomam o caminho de uma suposta liberdade implodindo a definição convencional de lar, a do abrigo acolhedor sempre no mesmo lugar. A vida para quase todos os personagens do filme precisa estar literalmente em movimento, as paisagens precisam ir e passar para a memória. A terra fica, os homens vão.

Estradeiros começa com uma construção metafórica que já determina sua posição política. A primeira imagem do filme é uma enviesada vista do mar. Após a câmera de lado, vemos o céu e um avião por um ponto de vista inusitado e seguimos com um corte para um percurso de um trem num túnel onde os trilhos passam acima das luzes do teto. A câmera continua tentando se achar, ainda sem parâmetros entre montanhas, para no corte seguinte, finalmente, avistar a linha do oceano de cabeça pra baixo. O mundo está invertido e, aos poucos, conforme o balanço do mar, vai se endireitando. O horizonte está sem eixo (do primeiro plano do filme, até se perder por completo lá no final, com o plano rodopiante externo das minas) e isso, descobrimos logo em seguida, vem da correria urbana que nos impulsiona a procurar algo de harmônico na natureza.

Mas, antes de condenar o lugar comum formal e discursivo do filme, é preciso se ater a algo mais básico e, nesse caso, ainda mais essencial: aos próprios estradeiros. Esses são personagens, à vista rasa, arquetípicos da sociedade contemporânea – latinos, artistas de rua, vendedores de pulseiras e colares que eles mesmos fazem. São, como um deles próprio diz no filme, sem medo de cair em preconceitos, aqueles que, em certas regiões do “puro Brasil”, viram “micróbios”. Mas sabendo que este mais puro Brasil há de ser utópico e fundamentalmente não existe, assim como micróbios humanos, nasce, então, uma articulação de entendimento idiossincrático do outro além do lugar-comum de suas vozes.

Uma sábia estratégia tomada pelos diretores indica um caminho: tomam como ponto de partida a estrada e, só a partir dela, seus adoradores. Com isso em mente, sabem que não poderão se ater à profundidade histórica ou sentimental de qualquer um dos mochileiros. Precisam “passar” por eles, como fazem com as paisagens. Isso não irrompe com uma superficialidade do contato, pelo contrário; indica cada perene transformação passageira das relações travadas. Assim, o filme vai se construindo, não como um mundo a priori, definido e teleológico, mas com a meta de entender e se encaixar nesse mundo através de cada encontro propiciado. Como indicavam as paisagens ainda sem enquadramento imposto no começo, através de um olhar de criança à espera do que pode vir. Uma atitude francamente aberta, filiada ao espírito primeiro de uma viagem.

Abrir os braços para o devir nem sempre é uma tarefa fácil e muitas vezes exige uma radicalidade de postura. Essa radicalidade é transposta tanto no sentido formal, às vezes de maneira um tanto quanto pesada pelas fusões e pela clara evidência redundante das giradas de câmera, mas principalmente na recepção das falas, incorporando suas verdades junto aos seus lugares-comuns (que muitas vezes não se separam). Aqui, surge o contra-senso fundamental dialético ao filme, pois enquanto algumas entrevistas aparentemente afugentam uma investigação além da superfície, é nessa superfície que se estratifica o impulso da vontade, do diálogo e do acordo político entre as partes (entrevistado/ entrevistador, exibição/espectador). Do homem, a natureza exige um pacto sensível, fora do âmbito cognitivo, para convivência. Sem pensar, de olhos fechados, com fé na intuição, talvez seja possível alcançar novas fruições pretendidas. Um risco inconseqüente e desbravador. Daí surgem as tentativas de explicação, quase sempre mal ajambradas por parte dos estradeiros (“É gente de todas as cores, de todas as raças. Com diferentes histórias de vida. E estamos todos juntos em um só coração. A terra. E nós dividimos irmanamente  o lugar e a paz. Fora do sistema... E nós vivemos juntos sem eletricidade, sem sistema monetário, sem dinheiro. Por isso a energia flue naturalmente, como um rio sem represas. E quando a energia flue tão naturalmente é como mágica. Não há ninguém que controla a energia ou a manipula. Então as possibilidades de manifestação e co-criação são muito mais potentes”).

A imagem de um neném galgando seus primeiros passos, quase escalando, rumo ao topo de uma escada, transborda esclarecimento sobrepujando qualquer comentário sobre a energia fluída. Sergio e Renata percebem que pode haver um certo tipo de misticismo do outro lado mas, no fim, vale mesmo é a concretude da troca entre um e outro. Cada degrau é um aprendizado, tanto pro neném quanto pro pai. A ação (do bebê) e contemplação (do pai e do espectador) é a vertente expressa de uma comunicação pré-oral. A impotência de elucidação se desvirtua então para a celebração. Fica o convite final para vivenciarmos cada nova experiência, mesmo em terras dantes batidas, sem nos limitar com os preconceitos do clichê, pois este muitas vezes nasce, com razão de ser, do empirismo comum. Cada passo, uma aventura.

Por outro lado, antes da estrada, há muito no mundo, já haviam casas. Ao fim, parece surgir um novo confronto quase além do filme (ou talvez só voltemos ao conflito básico dos primeiros parágrafos). Vira-se aqui a crítica de cabeça para baixo só para provocar uma questão que talvez abarque também muitos outros filmes atuais: se, pela estrada, Sergio e Renata conseguem explorar uma interessante relação com o outro ao buscar as vicissitudes de um mundo por descobrir, fica a sensação de que ainda estamos para encontrar uma porta para aqueles que escolhem conscientemente o conforto do lar, para aqueles incomodados que, sem fugir, brigam dentro do olho do furacão.

Dezembro de 2011

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