ensaio - especial cinema americano hoje
Genealogia do defeito
por Paulo Santos Lima

Curioso notar como alguns filmes americanos dos últimos 12 meses trouxeram, juntos, uma certa “genealogia do defeito” — no caso, defeito do mundo, daquilo que compreende o espaço de prática da existência humana. Claro que não é fato inédito no cinema norte-americano a construção de um mundo cheio de vícios, fissuras, tumultos e vulcões – Martin Scorsese, por exemplo, desde Taxi Driver (1976), passando pela excelência de Cassino (1995), até os mais recentes Gangues de Nova York (2002) e Os Infiltrados (2006), sempre mostrou a tensão explosiva do mundo. Mas é bastante curioso como essa visão sobre a vida, o homem e planeta, perduram bastante potentes: assim, vai-se da selvageria orgânica à metafísica, da evidência física dos atentados (sangue, terra lixa é áspera) à sensação indelével de medo por algo que nem é sabido o quê.

Fiquemos primeiramente nas introduções de alguns dos filmes para assim falarmos sobre os vários lados do gabarito propostos pelos cineastas este ano. Sangue Negro, de Paul Thomas Anderson (leia aqui texto sobre o cineasta), produção que melhor se faz dentro de um projeto de cinema grandioso, espetacular, de grande clássico, apresenta a questão da violência e sordidez humanas como algo concreto, palpável como as rochas arenitas, que se entranha na pele do empreendedor Daniel Plainview – que é tanto resultado como agente da terra, engalfinhando-se na derme terrestre a fim de lhe tirar o sangue (prata, petróleo) e lhe devolver o nada (um morto, por exemplo). A terra, do mesmo modo, reage igualmente abominável à ação humana. No prólogo, temos a primeira imagem apresentando o colosso material terrestre (um monte), som rascante sugerindo a extensão da experiência dolorida de estar junto à terra, ou à Terra. Nessa introdução, que parte do monte, mostra o esforço do protagonista para, com ele arrastando-se de perna quebrada pelo leito pedregoso do vale, para assim voltar ao monte com o mesmo enquadramento, luz e trilha, há um cinema extremamente físico e também iconográfico, simbólico mesmo.

Tal introdução não seria muito diferente daquela de Onde os Fracos Não Têm Vez, de Ethan e Joel Coen, se a voz do narrador não ficasse a reiterar os novos e indescritíveis tempos, tempos estes de extrema violência, e contra tal enunciado vemos imagens bucólicas do campo, imagens de western idílico. Eis um filme teórico, quase uma aula didática com professor (os Coen, professores, e não o narrador Tommy Lee Jones, que auxilia os diretores, mas não compreende isso aqui, não). Ainda que utilize imagens fotográficas PB mostrando o universo desairoso no qual a polícia de NY trabalha, Os Donos da Noite (acima) não é um filme menor, tampouco fácil em seu enunciado, porque seu escopo está junto às intimidades (mais do que o filme de PTA). Este filme de James Gray é, antes de tudo, direto, o que se evidencia nesse início tão literalmente preto-e-branco que se contrapõe à seqüência seguinte, coloridíssima, com Bobby, personagem de Joaquin Phoenix, tendo a sorte de transar com Eva Mendes. O que virá a partir daí é o mundo das fotos documentais (o “real”) arruinando a vida de Bobby. E tudo em nome da família.

A família, que também é a coluna vertebral de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, de Sidney Lumet. A introdução é, propriamente, algo introduzido na história que acontece tempos depois. Temos Philip Seymour Hoffman pegando Marisa Tomei por trás, ambos nus à câmera. O que teria de ser propriamente intenso, mostra-se desandado, anêmico. O marido a ama, mas a fratura entre ambos é um fato. Tal quebra estará ao longo do filme, na relação entre irmãos, um deles saindo com a esposa do outro, e o abismo entre pais e filhos. Situação tão morta quanto insustentável, e para a qual a solução estará nas ações extremas, com armas, no caso, na melhor tradição do filme policial. Não estamos, aqui, num cinema físico ou mesmo simbólico, mas sim numa obra de dramaturgia, quase literária, ainda que Lumet tire ótimo proveito cinematográfico deste seu filme literário.

Zodíaco, de David Fincher, passa pelo policial, envereda pelo thriller e chega a resultados surpreendentes sobre o imaginário coletivo, o que talvez seja a mais avassaladora das ameaças do mundo, sobretudo quando ela é personificada como uma logomarca, vulgo psicopata de carne-e-osso. O filme começa todo aéreo, com câmera voando por cidade até um carro onde um casal está em vias de dar uma transadinha. A tensão, contudo, se instala, com uma luz que vem da escuridão e torna gráfico e anônimo o assassino que põe fim à festa dos dois enamorados. Fincher apresenta uma imagem juvenil, lúdica e cintilante, daquelas que inspiram nossos desejos saudosistas e docemente libertinos e festejantes, para então violentá-la com um ato de violência gráfica titânica, potente como imagem a reter, no melhor que o cinema pode fazer com o slow motion. Há ainda o soberbo Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, de Tim Burton, que liquidifica todas essas questões para preparar um suco infernal sobre a dissolução da família, o império do rancor, da autofagia praticada entre humanos e o projeto único de dizimação total de qualquer ente afetivo. Um filme sombrio e sem concessão alguma.

Mas vale, aqui, como imagem tenebrosa, o que é tratado como ameaçador em Zodíaco, que é, por sua invisibilidade e onipresença, bem mais sinistro que a personificação da violência no personagem do matador de Javier Barden em Onde os Fracos Não Têm Vez, que se presta a um jogral entre o policial-narrador Tommy Lee Jones, as imagens de violência gráfica (uma delas, inesquecível, a dos corpos falecidos numa várzea qualquer, um pittbull mancando baleado, uma imagem que dispensaria maiores verbos). Assim, enquanto os Coen adotam um estilo caricatural, chanchadesco até, e ilustram como num gibi um mal onipotente e onipresente que perdura e sobrevive a tudo, David Fincher opta pela omissão, pelas reverberações que uma suposta ameaça concreta pode causar a milhões de pessoas, durante anos, décadas, vidas.

Em outras palavras, a redundância dos Coen em afirmar a (pré-)existência de um mal absoluto sobre todos os homens não ultrapassa a imagem do personagem do matador que nunca morre (ao lado) , por mais simbólica que seja. Ao passo que David Fincher consegue capturar um estado de espírito maligno, que acomete a coletividade, que corrói a paz de espírito, e que de fato é criada como um bumerangue que se volta contra quem o lança, uma vez que nas incertezas e vaporizações sobre quem seria o tal serial killer Zodíaco, fica claro que são os meios de comunicação, o cinema (Dirty Harry é posto no filme como eco desse estado de terror), a imprensa e a própria mitificação e narratividade com a qual as pessoas alimentam o mito Zodíaco, que tornam verdadeiramente “real” a ameaça. Quase como o ar, com acesso irrestrito a todas as plagas, o Zodíaco assombra as mais profundas intimidades, arruína famílias, embriaga homens e prostram policiais e Estado. Se em tudo e todos, a violência, seja esta chamada Zodíaco, seja qualquer outra, é parte conjunta da vida.

Da explanação sobre a violência atemporal em Onde os Fracos Não Têm Vez ao mal metafísico produzido pelo inconsciente coletivo e espraiado a todos os lados do globo em Zodíaco, da violência como ato único e final diante da falência do estado de justiça em Sweeney Todd e a ruína das relações pessoais deixando como última saída o encontro com o desairoso do mundo em Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto e Os Donos da Noite, tudo isso compõe um gabarito, mas é inegável que o lado ocupado por Sangue Negro é bastante valioso, na medida em que lida efetivamente com uma genealogia (mais do que o conjunto de filmes), confirmando que esse “mundo ameaçador” é única e exclusivamente aquele ocupado pelo ser humano. É do contato físico, pugilato entre homem e meios naturais, que, como no boxe, a terra reage aos golpes. O “mundo”, portanto, não é uma abstração, uma idéia, mas sim o espaço de ocupação do homem. E o cinema, arte que na reprodução das coisas tem de estar, antes da imagem chegar na tela, num determinado espaço, de corpo-câmera presente, é quem dá uma dimensão mais dramática da luta diária do homem no mundo. Fiquemos, assim, com a imagem de Daniel Plainview, tingido todo pardo e manchas pelo óleo queimando, e de costas para o filho acidentado, o espetáculo cinético da labareda infernal fazendo a imagem-espelho do próprio ser humano.

Março de 2008

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