Os Mercenários (The Expendables),
de Sylvester Stallone (EUA, 2010)

por Paulo Santos Lima

O espetáculo para a catarse

Karate Kid"Exploda o cais". É com essa frase - em momento epílogo e chave da trama, após muitas rajadas esfacela-corpos, socos, facadas mortais, casamatas e helicóptero explodidos, balaços bem apontados em tórax e crânios, explosões em colossais bolas de fogo e palácio arruinado indo ao chão - que o protagonista, Barney Ross (Stallone), o líder dos Expendables, faz a apoteose de Os Mercenários chegar ao limite sideral. É menos o personagem e, essencialmente, o diretor Sylvester Stallone quem dá a ordem de comando. Seu filme é, antes de tudo, um exercício de catarse. Ou para possibilitar a catarse. A catarse de um artista que, atravessada a turbulência dos anos 90, aterrissa bastante avariado nos anos 2000. A idéia, nessa apoteose insana, é celebrar a (sobre)vida desses dinossauros que ainda resolvem as coisas sem tanto pensar e muito fazer, ou, mais sinceramente, com a mão e o dedo no gatilho. O cinema mudou; Stallone não. Após a choradeira, mesmo que em lágrimas de crocodilo, de durão combalido de Rocky Balboa e Rambo IV, o Sly melancólico não esconde a dor mas responde ao seu modo, entre a bala e o muque. Em outras palavras, toma de assalto o cinema dos anos 2000.

Não sem motivo, o primeiro plano de Os Mercenários mostra as motocicletas dos protagonistas entrando em cena e indo a um galpão (espaço onde se reúnem os Expendables, mas, em livre associação, poderia bem ser um estúdio), para então o símbolo do bando tomar a tela; e o plano final mostra essas mesmas motos e seus cavaleiros voltando de onde vieram, partindo para além plano, sumindo engolfados pelos créditos finais. Stallone promove, em síntese, um ataque. Usa o sistema e sua tecnologia para contar uma história jurássica, daquelas dos filmes vagabundos de ação de mais de duas décadas atrás, quando fortões musculosos faziam justiça contra vilões odiosos, numa dicotomia límpida entre bem e mal, declarada, sem nuance. É um cinema, este de Os Mercenários, herdeiro dos anos 80, evidentemente - mas não na forma, apenas na trama. O cineasta pretende o mesmo de antes, mas usa ferramentas atuais: de Jason Statham, o todo simpatia do momento, a uma edição ligeira, de planos curtos, à facilidade do CGI em alguns raros momentos, à fotografia de luz contrastada.

O filme fala sobre um grupo de mercenários que é contratado para depor um ditador na ilha de Vilena, América Latina. A filha do sujeito (Giselle Itié), contrária ao governo do pai e idealista ao nível do sacrifício, comove Ross, que volta com seus parceiros à ilha para, sobretudo, fazer algo "justo". Assim como em Rambo IV, Stallone quer mostrar a redenção de seu personagem, contaminado (senão predestinado) pela violência, e que finalmente adere a uma postura "humanitária", da boa causa. Karate KidEssa é a única hipocrisia veiculada em Os Mercenários, porque todo o resto é uma declaração, um deixar claro e exposto, de todo um conjunto de modalidades de mortes, brigas e quaisquer outras ações físicas que certamente intelectuais e refinados chamariam de primitiva, grosseira ou ignóbil. Stallone faz, sem meios tons, um quase experimento estético ao colocar, em linha de produção-exposição na tela, facas enterradas em jugulares, corpos extirpados a balas de grosso calibre, carros tendo sua carroceria desfigurada a tiros e batidas, execução de seqüestradores vista através de dispositivo térmico de visão noturna, câmera mimetizando o ponto de vista do atirador que se vira de ponta-cabeça, sangue jorrando em quantidade gore, metralhadoras do nariz de um hidroavião varrendo à morte os soldados inimigos dum convés. É elevar a grosseria à arte, naquilo que esta possibilita transcender a uma esfera superior, negativa ao dado e à matéria, mais a ver com a idealização.

É formidável, portanto, que um filme que trabalha com elementos bem físicos - indo do metal das lâminas e projéteis aos corpos musculosos dos atores e boa parte das explosões e fogaréu feita com reação química nada a ver com o digital - resulte numa estética mais a ver com um espetacular frenesi "pirotécnico greco-romano". Stallone adota uma lógica bem contemporânea - a da montagem que funciona pelo fluxo de planos curtos - para criar a catarse, em chave espetacular nonsense, mas o diálogo amigável pára por aqui. Seu filme, franco, é um valioso bloco granito destoante da pauta audiovisual do cinema de ação mainstream que, grosso modo, é um exercício exibicionista de tecnologia e de técnica. Temas chulos, visões de mundo boçais, tudo isso está nos longas que compõem a média da produção desses últimos dez anos, como os de Michael Bay (Transformers, A Ilha), os "de arte" feitos pelos Nolans, ou os de borderô mais modesto, como Velozes e Furiosos. Todos são revestidos por um bom gosto, por um "ISO 9002" construído pela tecnologia dos efeitos digitais e pela destreza técnica de roteiros engenhosos, que tratam de questões e ação simplórias - as mesmas justiçagens entre bem e mal - mas colocam uma revelação no enredo, ou contam a trama menos linearmente. A ação, como forma, mostra-se "grande" através de números, numa lógica binária que faz do digital e dos efeitos o fim. O discurso continua tão de direita quanto os filmes esdrúxulos de Chuck Norris ou as patetices do Stallone entre os anos 80 e 90, mas a ciência endossa esse cinema. Ciência que se confunde de humanismo. Um cinismo que, coincidente, segue a mesma doutrina da situação geopolítica da era Bush. Sylvester Stallone e seu filme não seguem paralelos à barbárie, mas a declaram na forma de um cinema "analógico", físico e natural; sem maquiagem e, por isso, verdadeiro.

Karate KidThe Expendables é, também, uma lição. Parece, para Stallone e seu filme, que um corpo cansado pelo tempo e, por conseguinte, sua imagem geriátrica só podem existir na tela se resistentes a uma política que decreta doente terminal o cinema no qual estão fundados. E filmar é resistir. A catarse, enfim, é do autor justamente porque é, também, de quem assiste à sua obra. A visibilidade é o que devolve ao artista de cinema sua condição, mas também o coloca na encruzilhada do mercenarismo. Moeda de troca cara, essa da imagem. Sylvester Stallone, tatuado, corpo deformado, mostrando-se ao espelho de nossos olhos, é um mercenário que realizou um filme nada ordinário.

Setembro de 2010

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