reestréia Faces
(idem), de John Cassavetes (EUA, 1968) por Eduardo
Valente
Cinema do corpo, espelho da alma A
entrada em Faces é uma experiência abismal: depois de uma seqüência inicial
um tanto metalingüística e quase deslocada (mas nem tanto) da narrativa subseqüente,
somos jogados no meio de uma seqüência noturna em que dois homens e uma mulher
saem do “The Loser’s Club” (que nome, que nome!!...), e vão para a casa dela.
Lá, embriagados, se envolvem numa longuíssima seqüência de sedução e repulsa,
onde muito aos poucos vamos entendendo os laços que unem (ou não) cada um deles.
A seqüência é longa, mas os planos são curtíssimos, instáveis ao extremo: cortes
rápidos, quebras constantes (e propositais) de eixo, aproximações extremas nos
rostos misturadas com planos abertos, pequenas elipses. Uma leitura apressada
falaria de uma “câmera bêbada” como os personagens, mas muito mais do que uma
questão de embriaguez, a inquietude da câmera de Cassavetes é reflexo do desconforto
dos personagens (a princípio um desconforto lido pela situação em si, mas que,
ao longo do filme, veremos se tratar de um desconforto muito mais profundo, existencial
mesmo). Esta primeira seqüência, agressiva e confusa (ambos
efeitos absolutamente propositais), estabelece um desafio ao espectador: “ame-me
ou deixe-me”. O filme ali deixa claro para o espectador que não pretende facilitar
sua fruição, nem no que tange a linguagem, nem especialmente no que tange o retrato
das relações humanas. Trata-se, neste sentido, de ato até generoso: Cassavetes
estabelece bem cedo suas regras, e permite ao espectador que tome por si a decisão
de comprá-lo ou não. Aos que optarem por comprar, Faces oferece uma viagem
às profundezas do ser humano, principalmente a partir das relações de gênero,
amorosas e sexuais – e neste sentido o filme não poderia ser mais representativo
do seu ano de produção (1968), antecipando muito do debate sobre os papéis da
mulher que dominaria os EUA na década seguinte. Nesta
viagem, Cassavetes demonstra uma disposição cada vez mais rara no cinema que o
sucedeu (em especial, o dito cinema independente americano, do qual foi eleito
postumamente como o “papa e fundador”, mas que tão pouco deve a ele no geral):
tornar ternura e agressividade, fragilidade e poder, desesperança e transcendência
pólos não apenas próximos, como convivendo sempre nos mesmos corpos. Corpos, sim:
porque embora o filme se chame Faces, e realmente tenha alguns dos mais
marcantes closes em rostos humanos vistos no cinema (especialmente os de Richard
Morley e Lynn Carlin – estupendos – mas no de todos os atores), todo o jogo do
filme é uma questão de corpos em movimento. Talvez fosse mais adequado falarmos
mesmo corpos (nada celestes) em órbita, porque cada um deles parece gerar um campo
gravitacional em torno de si, constantemente atraindo e repelindo os outros. Não
por acaso os primeiros beijos entre Morley e Gena Rowlands mais parecem uma colisão
entre dois objetos animados do que exatamente um encontro “amoroso” entre dois
seres humanos. Trata-se menos da expressão de um desejo do que a simples concretização
de uma força maior que ambos, que os empurra em direção ao outro. O mesmo acontecerá
mais adiante nas cenas entre Seymour Cassell e Carlin, no apartamento desta –
tanto na sedução como na impressionante seqüência da reanimação dela, em que poucas
vezes vimos o peso de um corpo filmado com tanta força. Tudo
isso vai culminar na seqüência, e especialmente no plano final, em que os corpos
de Morley e Carlin parecem mesmo atrair e repelir um ao outro seguidamente, como
se eles mesmos não dominassem mais seus atos, seus impulsos, seu desejo do carinho,
do entendimento, mas também da fuga, da liberdade, da recusa. Este plano final,
inclusive, serve como antítese a todas as idéias mais simplórias do cinema de
Cassavetes como um do domínio do improviso: um plano longo, de enquadramento fixo
e estudadíssimo para atingir o máximo efeito das entradas e saídas de quadro,
da relação de profundidade e mudança de altura através da escada. Plano para o
qual todo o filme converge, mostrando que o cinema de Cassavetes é um do planejamento,
ainda que um planejamento que incorpora a matéria-viva do cinema (ou seja, os
atores – mas também a câmera) como partes criadoras de um sentido já muito pensado. É
aí que o cinema de Cassavetes se aproxima do de um Rohmer, que assim como ele
(embora em registro visual e dramático absolutamente distinto, pelo menos após
O Signo do Leão) se aproveitava de um determinado “efeito de real”, só
que atingido a duras penas (através de uma exploração altamente estudada de progressão
dramática e linguagem muitas vezes teatral – este último aspecto muito mais em
Cassavetes, é verdade, especialmente notável, não só pelo tema, em Noite de
Estréia). Só que este efeito de real, muito mais do que “fotocopiar” a vida,
busca transcendê-la pela sua hiper-utilização, pela sua exacerbação, nos permitindo
o sentimento essencialmente artístico do êxtase da percepção. Ou seja: tudo aquilo
que um determinado cinema “sanguessuga do mundo real” (pensamos hoje especialmente
em Na Cama, cuja trama inclusive possui paralelos com a de Faces)
não consegue sequer compreender, que dirá solucionar cinematograficamente. Em
Faces, muito mais do que apenas (apenas?) uma compreensão profunda dos
dilemas humanos frente a incompletude e beleza inerentes aos encontros e relações
amorosas, temos ao trabalho um mestre da arte cinematográfica no ápice do seu
domínio da linguagem que resolveu explorar. Não é pouca coisa. editoria@revistacinetica.com.br
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