Fausto (Faust), de Alexander Sokurov
(Rússia/Alemanha, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

Arte e mistério

A adaptação de um mito já tantas vezes explorados (Goethe, Mann, Murnau) sempre implica numa forma de atualização discursiva, ordenação das noções de espaço e tempo, desenho da imagem, e do papel da arte mediante todos estes elementos.  Esse espaço é talvez onde melhor compreendemos o que é a tal marca do autor. Sokurov fecha sua tetralogia com o mito de Fausto, um marco inaugural que precede/profetiza a catástrofe, fazendo uma enorme ponte histórica entre os três maiores símbolos do poder no século XX quando a onipotência escapa às mãos (Hitler, Lenin e Hirohito). O problema está em última instância ligado à tradição moderna alemã, a Lessing, Schiller, Kant ou Goethe. O tema está dado: um olhar sobre a história já há muito explorado pela arte do começo do século passado que o diretor russo mesmo aceita como referência. Mas o que está implícito no gesto artístico de atualizá-lo e como isto é feito?

Já conhecemos de filmes anteriores o conjunto de recursos cinematográficos pelo qual Sokurov opera: lentos movimentos de câmera, dilatação dos tempos, o simbolismo, o tom sépia, a luminosidade que escorre, o trabalho plástico sobre os negativos, os ângulos tortos e o foco que desorganiza as noções de distância. Todos contribuem para criar uma sensação onírica de desnorteamento, mas são também artifícios que chamam extrema atenção para si mesmos. Todos supõe uma visão do mundo baseada no mistério que é a realidade, ao mesmo tempo em que destroça pelo exagero este mesmo mistério, evidenciando os mecanismos pelos quais ele é construído. “Mistério” é palavra comum frente as imagens de Sokurov, mas o que é curioso é que a história que elas versam é justamente a da ausência deste sentimento, em um paradoxo correlativo àquele expresso ainda nos minutos iniciais de Fausto, quando o doutor caça no corpo a localização da alma. Ou seja, onde na matéria está o espírito? Como dominá-lo, recriá-lo?

Em certo sentido, Sokurov se assume como um herdeiro da crise tarkovskiana: como o homem contemporâneo pode enxergar mistério e ter fé no milagre após tal nível de desenvolvimento intelectual? Mas em vez da perspectiva católica, põe aquilo que é um fato católico por excelência (a arte como mistério) nas mãos de um homem laico, despindo o mundo de possíveis vislumbres metafísicos. Assim, tudo está em nossas mãos (ou em nosso “poder”). O mundo e a história são calculáveis, recriáveis, um espaço cênico vazio para a invenção – Sokurov mesmo recriou um vilarejo alemão aos moldes do século XV, do mesmo modo em que em Arca Russa recriava a história de sua nação num espaço de tábula rasa que curiosamente era um museu, num plano-sequência que durava não menos do que milhares de anos. O homem sobre o qual Sokurov versa não conhece limites. Quando a natureza lhe dá algo de novo, ele rapidamente trata de decompor e criá-lo novamente.

É isto que assistimos naquela que é, senão uma das melhores cenas que Sokurov já filmou, uma que encontra a síntese perfeita de seu cinema. Depois de vivenciar uma paixão arrebatadora (por Margarete), ver a face de Deus (num recurso de iluminação dos mais clichês possíveis), verter sua paixão em obsessão e consumar o ato de possessão, Fausto (Johannes Zeiler) vende sua alma ao diabo somente para, segundos depois, apredejá-lo. Logo a seguir, vê um poço de água borbulhando e diz: “Deus não sabe como isto funciona, mas eu sei”. Este protagonista não é tanto um pesquisador ávido quanto um sujeito que consegue refazer mesmo os espetáculos mais belos da natureza.

Sokurov faz de seu tema um paradoxo do estatuto contemporâneo da imagem, isto é, de um cinema que consegue reconstruir num espaço vazio todos os movimentos da realidade que ele nasceu para capturar sem intervir. Ver sem ter de compreender. E em vez de isto gerar poder, bem, isto gera solidão. O Doutor Fausto caminha em um deserto e vive a mesma solidão dos outros três personagens de sua trilogia. Os estudos de química, matemática e alquimia destrincharam o corpo, destruíram a alma, mas não o levaram a lugar algum. É a razão pela qual Sokurov nos parece ao mesmo tempo um tanto ultrapassado e um tanto contemporâneo: com todo o ardor, pede o mistério quando nem mesmo ele já pode acreditar nisto.

Agosto de 2012

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