Fay
Grim (idem), de Hal Hartley (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima Uma
Torre de Pisa entortada para cair
Fay Grim
é uma continuação do (supervalorizado) As Confissões de Henry Fool – agora
com Fay, a ex de Henry Fool, envolvida numa trama meio nonsense de espionagem
global, e com o espião Henry sendo uma presença mítica, talvez morto, talvez vivo
e orquestrando essa bagunça (organizadinha) dos eventos amalucados. Ainda que
parta do universo individualista destrinchado em seus filmes mais badalados (Confiança
e o interessante Simples Desejo), Hal Hartley logo o abandona para falar
do painel geopolítico atual. O que não é propriamente uma aberração em seu percurso,
pois nos dois filmes anteriores, as questões pessoais do coração eram alargadas
para um escopo mais universal. Ali, era Hartley tentando ser Godard – pretensão
insana, porque o diretor francês faz filosofia cinematográfica, ou cinema filosófico.
Neste Fay Grim, Hartley centra-se mais no macro, mas, em vez de filosofar,
alinha-se à ciência política, pois as aventuras de Fay, Henry, com agentes da
CIA e tal, são orquestradas pelo contexto do mundo atual, o que, metonimicamente,
significa “Estados Unidos”. Temos, assim, um filme que ainda
trava diálogo com Michael Moore e com o Godard dos anos 80, mas numa chave cômica,
mais próxima do cinema indie americano (em que as trapalhadas vêm do roteiro
– ao passo que, em Godard, vêm da montagem, dos corpos, das recolocações e centrifugações
de elementos de gênero, do texto colado). Essa chave denuncista é de uma anemia
brutal, quase infantil, pois, à parte a redundância do assunto, os estupros políticos
cometidos pelos EUA ficam ao nível dos diálogos, sem qualquer correspondência
com o que as imagens nos mostram. Ah, sim: há Bin Laden (Jallal, pois Hartley
não teve colhões de manter o nome do verdadeiro), amigo de Henry Fool, personagem
mostrado belo no filme, devido à sua dimensão trágica e idealista. Parece uma
figurinha do Mandrake colada em livro de matemática. Fay
Grim é um filme que nos lança pelo menos duas questões. Uma delas, já respondida
no final dos anos 90 (pelo menos para alguns), é se Hal Hartley é de fato um cineasta
a ser considerado importante no panorama mundial de cinema. A outra, mais evidente,
é por que o uso de uma câmera torta nessa altura do campeonato (e talvez essa
adoção venha justamente pela altura do campeonato em que se encontra cineasta:
sua obra e mundo, já bem desgastados, longe da euforia ineditista do boom
do cinema indie americano no início daquela década de 90). O enquadramento
entortado, fixo nos pingue-pongues do campo-contracampo, não parece responder
estilisticamente ao que trata a história deste Fay Grim. É uma simples
“câmera-Torre de Pisa”: só que o mundo, aqui, parece mais abilolado que torto
– pelo menos, Fay não é vítima da pá do sistema, como os personagens de Kafka,
tampouco tem um labirinto de emoções e sensações que pedem que o filme leve para
a evidência da imagem, como nos filmes expressionistas (ainda que, nesse caso,
haja leve coincidência entre o que os expressionistas queriam falar sobre o mundo
daquele momento e o que Hartley quer comentar sobre o atual – mesmo que de forma
redundante, estudantil, démodé). A câmera torta,
recurso desgastado na obra de Hal Hartley, é o cineasta tirando a roupa – cueca
e meia, até. É quase como uma grife, uma assinatura de alguém que foi considerado,
naqueles “remotos” anos 90, o cineasta americano que dialogava com o cinema europeu.
Como se, necessariamente, dialogar com o cinema europeu (e que cinema europeu
era esse, tão complexo que era?) fosse uma inconteste virtude. Como se Quentin
Tarantino, naquela mesma época, não estivesse travando diálogo muito mais selvagem,
orgânico e cinematográfico com as viagens cinefílicas da primeira fase da geração
nouvellevaguista (ou mesmo o não-nouvellevaguiano Jean-Pierre Melville); ou com
os gêneros americanos, como o noir ou o Scorsese de Os Bons Companheiros.
Aqui, sim, há pertinência e diálogo político com o mundo. Há cinema, não apenas
prestação de contas em formato audiovisual. Setembro de
2007 editoria@revistacinetica.com.br
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