Volta para parte 1 das entrevistas

A Estória da Figueira – 2006 – 16min – 35mm (produção: ECA-USP)
Direção: Julia Zakia

Cinética: Seu filme se destaca por conseguir instalar uma atmosfera particular de encantamento infanto-juvenil, e tem nessa textura a principal força. Em algumas passagens, porém, tenho dúvidas se um certo “simbolismo poético/metafórico” não tiraria o foco da densidade alcançada. Queria que você comentasse um pouco essa postura, essa relação entre a atmosfera física e a forma como você vê o simbolismo possível em seu filme.

Julia: Vou responder tendo em vista que você não se refere a símbolo como aquilo que tem valor evocativo, mágico e sim algo próximo à metáfora, à analogia. O que acontece nas imagens acontece na história, o que a menina vê ou sente no filme está nas imagens e nos sons e compõem literalmente nossa narrativa. O personagem principal de nosso filme é uma criança que perdeu a mãe e vive com seu velho pai. Nas redondezas existe uma vizinha e um jardineiro, amigo da menina. O que acontece a partir desse enredo envolve as vivências da menina, sua imaginação e táticas de sobrevivência, e é através dela que nos embrenhamos na mata.  Na memória que posso ter e no quanto tento me manter atual em minhas próprias convicções e liberdades mentais de infância, acredito realmente no que se passa na estória original e no filme. Um olhar sempre atento às manifestações humanas, da natureza e sobrenaturais, e a liberdade de movimentação entre estágios de existência e até dimensões, a partir da imaginação e dos sonhos, porém sem procurar metáforas. Acredito no fantasma, por exemplo, acho que a menina desobedeceu a madrasta e realmente foi passear com sua mãe morta.

Cinética: Deixar de lado o realismo e “tirar os pés do chão” é um movimento pouco comum no cinema brasileiro contemporâneo. Queria que você falasse dessa opção e da forma como você vê sua relação com o que mais cotidianamente vemos na cinematografia brasileira.

Julia: Minha primeira preocupação cinematográfica é não trair o que julgo fundamental em qualquer arte: que aflorem emoções estéticas. Penso que não há realidade sem emoções. Por isso, "deixar de lado o realismo" ou "tirar os pés do chão" é uma maneira de infiltrar-se esteticamente na própria complexidade do real.  Por isso, as eventuais ressonâncias entre o que fazemos e outras artes ou filmes brasileiros ou de outro lugar são conseqüências
das nossas próprias linhas de atuação.

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Dias Úteis – 2005 – 30min. – DV (produção: UFF e UFRJ)
Direção: Natalia Sahlit e Priscila Maia

Cinética:
No começo, o filme soa como mais um retrato “vitimizador” de um personagem dito “popular”, através da temática do desemprego. Aos poucos, porém, com a entrada dos outros dois personagens e o interesse por uma decupagem de estudo de tempos, o filme foi me trazendo uma grata ampliação dos sentidos iniciais. Queria que vocês comentassem como vocês chegaram a esse formato final.

Natalia/Priscila: A idéia era fugir das estatísticas sobre o desemprego, dos gráficos cheios de números que a rigor não significam nada, das imagens conhecidas das quais sempre é retirada alguma pessoa “do povo” que representaria o todo em sua fala desesperada. O Jaísio, o Fabio e a Gabriela são pessoas bem diferentes e, por isso, têm formas diversas de lidar com a mesma questão. O Jaísio trabalhou durante 18 anos em uma empresa e, demitido, tem dificuldades de se recolocar em um mercado cujas regras tornaram-se flexíveis, ainda mais tendo quase 60 anos e pouco estudo; o Fabio está preocupado em viver de sua arte; já a Gabriela tem nível superior, mas se questiona se realmente é capaz de encontrar um lugar seu no mundo, diferente daquele que a família impõe. Não queríamos com isso estabelecer “tipos” de desempregados, mas encontrar pessoas que tivessem rotinas diversas dentro do desemprego. É claro que na montagem os três dialogam em diversos momentos, mas optamos por não beneficiar o ritmo geral do filme em detrimento do ritmo de cada pessoa. Por isso temos blocos grandes para cada personagem.

Cinética: Seus personagens por vezes parecem ignorar ou fugir da câmera, ao mesmo tempo em que brincam com a situação de terem que levar suas vidas adiante enquanto se tornam personagens de um filme. Falem do processo criativo na tentativa de encontrar essa intimidade mediada com os personagens, sem apelar para metalinguagens didáticas, e do próprio sentido paradoxal de se narrar eventos sobre a “desocupação”.

Natalia/Priscila: Foi engraçado, mas tivemos que dizer muitas vezes para as três pessoas que acompanhamos que elas poderiam seguir suas rotinas normalmente, que isso nos interessava. O que fizemos para contar com a mínima programação de filmagem foi perguntar para os três o que eles costumavam fazer nos dias em que iríamos acompanhá-los. Às vezes encontrávamos uma rotina já um pouco programada, como a da Gabriela, que tinha o horário da academia, da aula de inglês, ainda que isso não pudesse ser sustentado o dia inteiro; outras vezes, como no caso do Jaísio, sabíamos que ele costumava cuidar das plantas e ir à escola, mas nada mais. Muitas vezes descobríamos aonde iríamos na hora, e seguíamos as pessoas com a câmera na mão. A opção por nos colocarmos dentro do filme veio justamente daí: estabelecemos uma relação muito íntima com estas três pessoas e achamos que a nossa não-exposição implicaria em um documentário falsamente contemplativo, distante. Procuramos valorizar a sensação do tempo, não o tempo cronológico: o que são cinco minutos na vida da Gabriela podem ser dez na do Jaísio ou quinze na do Fabio.

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O latido do cachorro não altera o percurso das nuvens – 2005 – 10 min. – 35mm (produção: UFF)
Direção: Raul Fernando, Camila Márquez, Rebeca Ramos, Estevão Garcia, Pedro Urano

Cinética: O filme soa como música, ao se filiar a uma busca de tempo e ritmo de celebração dos sentidos mais do que a qualquer outro objetivo direto. A fotografia, a edição e a sonoridade conseguem a graça de um show de luz e sombra, esforçado em encantar pela fisicalidade mais primordial e "inútil" do cinema de efeitos. Como se deu esse “arranjo”?

Estevão: A comparação do filme com a música é pertinente porque a nossa idéia original sempre foi fazer um filme amplamente sensorial, envolvido por uma fumaça composta por diferentes sensações. Pensávamos na utopia do filme-nuvem, onde a premissa preponderante era que cada observador teria para si um sentido próprio e particular do objeto observado. Baseando-nos nessas premissas, e na idéia de nos aproximarmos mais intimamente à tradição do cinema experimental, optamos por penetrar em seu estágio embrionário: as vanguardas cinematográficas do século XX. Os filmes situados na transição do dadaísmo ao surrealismo, e os filmes surrealistas propriamente ditos, nos inspiraram e nos motivaram no processo. A primeira imagem que me apareceu foi a de três homens de fraque e cartola fumando charutos, meio que à maneira do chamado cinema das atrações ou cinema pré-narrativo, onde o cinema ainda não era uma arte especializada em contar estórias e sim um “experimento” que registrava os eventos mais banais. O importante para esse cinema, que tanto encanta e que estabelece um elo com o cinema experimental, não eram os eventos em si, e sim a novidade que representava essa “máquina” que os capturava.

Cinética: O diálogo aberto com as vanguardas do início do século XX dá ao filme uma camada de estudo de estilo. De que forma, porém, se é que isso foi levantado e sentido por vocês, vocês se vêem dialogando ou se desviando das construções cênicas mais recorrentes no cinema brasileiro hoje?

Estevão: Quando o projeto do Latido nasceu, não havia da nossa parte uma recusa programada e consciente da dramaturgia e dos procedimentos mais recorrentes no cinema brasileiro. Havia sim, nenhuma identificação com o chamado “cinema da retomada” e a constatação de não existir nesse cinema nenhum realizador que nos cativasse. As minhas maiores referências no cinema brasileiro, por exemplo, são cineastas que iniciaram suas carreiras nas décadas de 60 e 70.  A idéia de fazer um filme não realista, não naturalista, e de pensar na fabricação do roteiro a partir das imagens, e das sensações por elas suscitadas, e não de um enredo bem amarrado, surgiu mais da vontade de fazer um filme não convencional e de nossas preferências pessoais. O Latido é um filme de cinéfilos, escrito e dirigido por pessoas que além de amar fazer filmes, também amam ver filmes.

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Fim de Expediente – 2005 – 15min – DV (produção: UFF)
Direção: Alexandre Sivolella

Cinética: Seu filme é uma crônica suburbana que explora de maneira muito intensa as interpretações coloquiais de seus atores com um realismo quase farsesco na forma de falar dos personagens. De que forma você desenhou esse tom das interpretações e a relação com o texto original do roteiro?

Alexandre: O roteiro original nasceu de sucessivas conversas entre a equipe de produção do filme: Marco Borges, o roteirista; José Eduardo Limongi, o fotógrafo; Davi Kolb e Bruno Di Donato, os produtores; e eu. As conversas e os inesquecíveis "causos" que nos eram narrados com o encanto do ineditismo envolviam um sem número de personagens, que apareciam e desapareciam das histórias como que por encanto, envolvendo noções de espaço e de tempo muito peculiares, abrangendo dimensões de significação que se sobrepunham e tornavam ainda mais complexa e trabalhosa a apreensão de uma ética própria àquelas situações. Tive que refletir bastante sobre que tipo de releitura eu faria em cima do trabalho roteirizado que eu utilizaria como ponto de partida. Que sentimentos ou sensações poderiam ou deveriam se expressar, através dos personagens em interação? Não era minha vontade trabalhar com o texto em termos de verossimilhança, pura e simplesmente. Pensei para cada personagem um tipo específico, um jeito de olhar, de falar, de se movimentar, de andar, que tentei trabalhar minimamente com os atores – dentro das minhas próprias limitações, inclusive.

Cinética: Tenho um certo desconforto com esse tipo de crônica desencantada que você bem celebra no filme – há um certo cinismo que me lembra momentos não muito felizes da obra de um Rubem Fonseca, e mesmo a estereotipia do suburbano através desse painel de pequenos causos, que me soa às vezes um tanto fetichista.  Queria que você comentasse essa opção de dramaturgia e como você vê esse efeito de comicidade através do cinismo como traço quase antropológico.

Alexandre: Existe, sim, um certo desencantamento, como você aponta. Mas não é a única questão presente no Fim de Expediente em relação ao lugar e aos personagens que o habitam. Eu me lembro muito bem de me perguntar várias vezes o que eu sentia a respeito daquelas pessoas. Nunca obtive uma certeza desses questionamentos, mas certamente o mais próximo que atingi do que sempre acreditei querer desse trabalho foi justamente a incerteza. Em relação ao cinismo apontado, acredito que ele possui sim uma grande capacidade de comicidade, mas o casamento entre o cinismo e o desencantamento é justamente o que buscava para, tanto impedir uma apropriação total e cristalizante do caráter dos personagens (como se pudessem se restringir a arquétipos já consagrados), como também para provocar um mal estar em quem buscasse ali apenas diversão. Espero que me faça entender.


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