Febre do Rato, de Cláudio Assis (Brasil, 2011)

por Raul Arthuso

Viver a mise en scène

Uma certa esquizofrenia definia os dois primeiros longas de Cláudio Assis, notável pela briga de duas grandes pulsões: mostrar o lado escroto do mundo e, por outro lado, mostrá-lo como algo belo. Nos primeiros minutos de Febre do Rato, podemos pensar que “a fera foi domada” e que, sob influência de seu fotógrafo, Cláudio Assis transformou-se afinal num esteta. Ao contrário. O filme traz novos elementos para a obra de Assis, que se harmonizam nos conflitos com sua sordidez já conhecida, e tornam esse o seu filme mais potente.

Vários desses aspectos poderiam ser pontos de partida do crítico, mas cabe destacar dois bastante evidentes como vetores principais. Um deles é o cinema como consciência: Assis se reporta à história do cinema brasileiro. Belair, Cinema Novo, o Cinema Pernambucano dos anos 90. Mais que simplesmente citá-los ou usar do fetiche, o filme parece embrenhado por seus valores de atitude. Nesse sentido, Assis é capaz aqui de produzir momentos de verdadeira catarse, seja para dentro, como na cena do mijo de Eneida; seja para o exterior, como na sequência do Sete de Setembro. Impressiona, em suma, que Febre do Rato tenha um plano – em que as personagens transam e se banham numa caixa d’água filmada de cima frontalmente – que nos diga tantas coisas (pela violência do sexo, a nudez de Maria Gladys, a dança dos corpos naquele pequeno espaço e o inusitado da situação), enquanto um plano quase idêntico em Os 3 não diga coisa alguma.

O outro elemento é a composição de Zizo, o personagem vivido por Irandhir Santos. Uma parte das personagens de Assis em seus filmes anteriores se destacava pela doçura e inocência, que as tornavam vítimas da outra parte das personagens, os sórdidos, os cruéis. Zizo é, nesse sentido, único: transita de um extremo a outro sem, contudo, ser limitado em nenhum deles e mantendo todos em convivência. É como se neste personagem uma série de forças vivessem uma batalha, onde eventualmente uma se destaca; porém, todas estão lá. Por isso é ele tão vivo, ativo, expressivo. Essa medida vem, em grande parte, pelo desempenho de Irandhir Santos. A altivez de sua figura legitima os sentimentos da personagem, seus vícios, suas fraturas, sua boçalidade e, principalmente, sua sinceridade perante a vida. O personagem ganha em Irandhir a materialização do líder mártir que a cultura brasileira parece cultivar: Gregório de Matos, Glauber Rocha, Chico Science. Cláudio Assis, via Zizo, via Irandhir, fala do ser-Brasil.

Não é por acaso que Waly Salomão também vem à mente: Zizo vive a vida como mise-en-scène. Sua poesia não está apenas nas palavras – inclusive porque a poesia que Zizo recita nem sempre convence – mas nos gestos, na maneira de posicionar-se perante o grupo, no agir. Esse filtro, na verdade, faz a volta para outro poeta emblemático da cultura brasileira: Paulo Martins, personagem de Jardel filho em Terra em Transe. Os dois acreditam na ação acima de tudo e buscam trazer de volta o sentido grego da palavra “poesia” – ligada à ação, à atitude. Em Terra em Transe, Paulo Martins é um revolucionário político que quer mudar o mundo (e acaba reprimido por ele, o que aniquila sua existência); em Febre do Rato, a poesia é inquietação, agitação, levar as coisas ao limite, viver a mise en scène.

Julho de 2011

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