A
Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele (Brasil, 2008) por
Eduardo Valente
Cineasta
encantado
Em dois momentos diferentes de A
Festa da Menina Morta enquadra-se o caudaloso rio em cuja margem se localiza
a pequena cidade onde se passa o filme. Ali, frente àquela água toda que quase
não permite que enxerguemos a outra margem, mas ao mesmo tempo permite que vejamos
o suficiente para entender a presença sufocante da floresta bem próxima, a câmera
de Lula Carvalho sossega por alguns momentos e podemos contemplar uma imensidão
quase surreal de natureza onde a presença do homem, inevitavelmente, acaba adquirindo
uma dimensão absolutamente distinta daquela a que nos acostumamos nos ambientes
eminentemente urbanos onde habitamos. Seja no que se refere à (quase inexistente)
narrativa, seja mesmo no âmbito do êxtase estético que vários planos do filme
perseguem de maneira mais radicalmente perceptiva, não são dois planos particularmente
marcantes do filme, a princípio. No entanto, parece claro que toda a lógica muito
particular que rege esta estréia na direção de Matheus Nachtergaele encontra ali
naqueles momentos a justificativa real não só de sua existência, como principalmente
da potência que consegue atingir. Frente a um espaço que nos parece automaticamente
tão estrangeiro (e não falo aqui apenas dos que não habitam aquela região, mas
sim do ser humano em geral) e cujas dimensões não cabem na tela, como certamente
não cabem nos olhos lá presentes, fica bem mais fácil entender o impulso de uma
obra que parece constantemente partilhar, seja frente a maravilhas ou horrores,
um estado constante de encantamento, em vários sentidos que o termo pode ter.
O que Nachtergaele parece nos propor é um estado de constante contato com a loucura
e o exacerbamento, um lugar estético onde o irreal e o hiperreal convivem o tempo
todo. Se
é a lógica do encantamento que rege A Festa da Menina Morta em cada uma
de suas opções, não será surpresa nenhuma que um filme que a proponha precise
estar preparado para que ela encontre ou não em cada espectador um espelho para
este sentimento (como já pudemos ver aqui mesmo na Cinética, onde Paulo
Santos Lima certamente não partilha dele). O que parece particularmente fascinante
no encantamento proposto por Nachtergaele no filme é que, de maneira alguma, ele
simplesmente se rende ao que está na sua frente (como seria fácil, dada a citada
imensidão natural e a excentricidade humana), mas tenta responder a essa realidade
com um gesto criador absolutamente original. Ou seja: neste cotejo tão contemporâneo
entre o que é do campo do documental e o da ficção, a busca do filme não será
nunca a de propor um estado de confusão onde um se misture no outro para tornar
imperceptíveis suas fronteiras, e sim a de um choque constante entre uma ficção
e um ambiente que parecem igualmente exagerados e excêntricos, beirando o incompreensível
(não o ininteligível, mas sim aquele que não podemos de todo compreender mesmo).
Nesse sentido, a escolha do filme pelo nome de Hilton Lacerda como co-roteirista
é extremamente feliz, pois a poética particular do universo ficcional dele cria
um estado de teatralidade constante que resulta muito bem no desejo de exacerbação
do natural que o filme busca o tempo todo como seu tom. Se
o filme nos diz o tempo todo que aquele ambiente não permite outra atitude frente
a ele do que uma relação visceral, este será o trabalho de Nachtergaele com os
elementos de seu cinema: assim funcionará o trabalho dos atores, sempre prontos
a momentos isolados de performance; assim se posiciona a câmera, nunca procurando
uma relação com os contrastes extremos de luz e cor que os diminua, nem buscando
jamais qualquer naturalismo de registro (que, o filme afirma, não pode existir
naquele lugar); assim, em última instância, se organiza a montagem, que encadeia
planos e cenas de acordo com a possibilidade deles encantarem também o olhar e
os sentidos do espectador, muito mais do que tentar com que as cenas, dentro delas,
ou a narrativa enquanto decurso ficcional, encontrem um encadeamento lógico-conclusivo
(embora até exista sim esta dimensão, só que ela não é a mais importante). É justamente
nesta relação entre as partes de seu cinema e o ambiente/narrativa que optou por
contar que o filme de Nachtergaele parece conseguir ser mais bem resolvido do
que os daquele cineasta que foi citado inúmeras vezes por ele como um modelo e
inspiração importantes: Claudio Assis. Porque, ao trabalhar com alguns dos colaboradores
costumeiros de Assis (Lacerda, Carvalho, vários dos atores) neste ambiente amazônico
e dentro desta lógica muito particular, Nachtergaele conseguiu tirar daquilo que
todos eles fazem de melhor um resultado que parece mais coerente entre as partes
do que o clima de denúncia social ou exploração de uma determinada realidade dos
filmes de Assis. Sem contar que os jogos de poder e de crueldade que tanto caracterizam
o cinema deste acabam curiosamente se tornando mais “naturalizados” (e não naturalistas)
num ambiente onde justamente a natureza onipresente e sem freios parece justificar
toda e qualquer lógica de “homem come homem”. No que se refere
ao seu método de trabalho, como já disse também aqui na revista Fábio
Andrade e como já mencionamos ao falar dos atores, A Festa da Menina Morta
é regido pela performance, o que além de atender à lógica do encantamento que
descrevemos acima, também faz todo sentido numa narrativa que, em última instância,
gira em torno de uma relação sócio-religiosa que passa ela mesma diretamente pela
idéia de performance para se construir. O perigo desta opção, do qual o filme
não escapa totalmente ileso, é que na medida em que cada elemento de cena ou cada
ator encontre ou não o espaço ou momento para sua performance, o todo do trabalho
resultará inevitavelmente irregular, pois dependente de que cada parte articulada
exerça uma enorme e semelhantes força de atração. Como isso não acontece, ao longo
de sua duração A Festa da Menina Morta só será tão encantador quanto o
elemento presente em cena conseguir ser. Só
que, para sorte do cineasta, para cada cena que parece truncada (como não por
acaso é o caso da maior parte dos diálogos que tentam articular uma narrativa,
falando da origem do mito da menina morta, e que soam forçadas, enfiadas a fórceps
na boca dos atores e na narrativa para fazer uma história minimamente existir),
existem inúmeras outras que resultam frescas, inesperadas (como o diálogo do índio
na beira do fogão ou a conversa entre a mãe da menina e o filho); para cada ator
cuja performance parece deslocada do ambiente e do clima onde o filme se insere
(é o caso principalmente de Cássia Kiss, mas também da cena-homenagem a Paulo
José), há uma série de outros que constroem presenças fortíssimas (como Juliano
Cazarré e, especialmente, a excepcional Edileusa Sahdo, um verdadeiro monstro
cênico em cada uma das suas aparições); para cada plano em que a câmera parece
mais preocupada consigo mesmo que com o mundo à sua frente (caso de alguns travellings
laterais pelo lado de fora da casa do Santinho, por exemplo), existem vários outros
planos fenomenalmente eficazes na capacidade de nos surpreender (toda a cena final
no palco e nas escadarias, o plano do incesto consumado, a cena da fogueira, etc).
Como resultado final, a verdade é que Nachtergaele realiza aqui um filme absolutamente
único (mesmo que reconheçamos matrizes e pontos de contato que vão de Assis a
Iracema, de Apichatpong Weerasethakul a Tsai Ming-liang), e que, ainda
que desigual, consegue por inúmeras vezes nos colocar no estado de transe hipnótico
que parece buscar. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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