nas locadoras
Filhos de Hiroshima (Gembaku no ko), de Kaneto Shindô (Japão,
1952) por Nikola Matevski A
maldição de um instanteSe não há guerra sem vítimas,
Hiroshima é um caso à parte, seja pelo pioneirismo, seja pela amplitude da devastação.
Sua transição da normalidade para o holocausto foi instantânea – afinal, a detonação
de uma bomba é arbitrária e sem meios termos, é um sim ou um não. Talvez nenhuma
outra fração de tempo tenha afetado tão brutalmente, simultaneamente e eternamente
o destino e a memória de uma cidade quanto a bomba atômica jogada no dia 6 de
agosto de 1945. E é assim que se apresenta a explosão na cena-chave de Filhos
de Hiroshima: a montagem paralela que alterna planos de um relógio com as
imagens da cidade e seus habitantes não funciona apenas como mera antecipação
ansiosa de um momento conclusivo (como seria típico de uma cena de ação), mas
também como oposição de um mundo indefeso diante de um instante arbitrário munido
de um poder quase sobrenatural. A cena é coberta com o som
de um bater de relógio e sua interrupção seguida de um breve silêncio é o corte
que define o instante fatídico, enquanto as imagens que outrora conservavam uma
figuração límpida são abaladas por visões quase abstratas. Logo, o horror instala-se
por meio de cortes ligeiros: vemos corpos desnudos cobertos por fiapos de roupas
e manchas da chuva negra radioativa, névoa carregada pelo vento, carcaças de edifícios,
rostos oprimidos pelos cacos da destruição. É o momento em que a representação
afastada e respeitosa retira força das tensões internas aos planos – das texturas
do nevoeiro, do contraste entre o claro e o escuro, dos volumes dos corpos e sua
inserção no espaço. Em
seguida, observamos Takako (Nobuko Otowa) encarando os resquícios da destruição,
quatro anos depois de ter perdido familiares naquela ocasião; a cena é, assim
como todo o deslocamento da personagem no filme, um ato de confrontação com o
passado. Takako é professora e foi morar com os tios depois da tragédia. O seu
retorno para as paisagens e gente de Hiroshima estrutura o filme, um percurso
marcado pelo uso extensivo das locações e imagens da cidade em reconstrução. Toda
vez que o foco se particulariza, no entanto, o holocausto ressurge como maldição
inescapável: está nas cicatrizes carregadas pelos sobreviventes, como no rosto
torrado de um mendigo maltrapilho. Mesmo quando as aparências foram poupadas e
sugerem a superação do trauma, o passado retorna (o andar torto de uma personagem).
Até o céu, que anteriormente Takako havia descrito como “tão grande quanto sempre
foi”, também se torna uma visão maldita, ao som de um avião passante. Assim, a
professora revisita os seus conhecidos e alunos ainda vivos e se depara com as
seqüelas, incluindo a morte. Se o estilo compassivo de Kaneto
Shindô (diretor nascido em Hiroshima cuja carreira de 145 filmes escritos e 43
dirigidos é predominantemente de difícil acesso para nós – a não ser Onibaba
- A Mulher Demônio) às vezes parece demasiado convencional ou previsível,
é porque em várias cenas não há qualquer dúvida ou conflito ao lado da vontade
escancarada do filme de nos sensibilizar com os horrores. Mas há também momentos
de tristeza delicada: a separação demorada de dois personagens em uma ponte, um
jantar que despede um avô de seu neto, e a solidão de uma mulher e seu afeto nunca
declarado por um homem falecido.
Dezembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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